Vestido de Noiva (2 page)

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Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
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O HOMEM -
(sem dar atenção)
Nunca fui tão feliz! Levei uma bofetada e não reagi.

(cumprimentando exageradamente)
Me dão licença.

 

ALAÍDE
-
(correndo atrás dele)
Não vá assim! Fique mais um pouco!

 

O HOMEM
- Adeus, madame.
(sai)
 

 

(A 3ª mulher dança com uma sensualidade ostensiva. Passa o empregado, de volta, com a vassoura, o pano de chão e o balde)

 

ALAÍDE
-
(saturada)
Ah! meu Deus! Esse também!

 

1ª MULHER
- Quem?

 

ALAÍDE
- Aquele. Tem a cara do meu noivo. Os olhos, o nariz do meu noivo, estão-me perseguindo. Todo o mundo tem a cara dele.

 

(Dois mesas e três mulheres desaparecem. Duas mulheres, levam duas cadeiras. As duas mesas são puxadas para cima. Surge na escada uma mulher. Espartilhada, chapéu de plumas. Uma elegância antiquada de 1905. Bela figura. Luz sobre ela)

 

ALAÍDE -
(num sopro de admiração)
Oh!

 

MADAME CLESSI
- Quer f alar comigo?

 

ALAÍDE
-
(aproximando-se, fascinada)
Quero, sim. Queria...

 

MADAME CLESSI
- Vou botar um disco.
(dirige-se para a invisível vitrola, com Alaíde atrás)
 

 

ALAÍDE
- A senhora não morreu?

 

MADAME CLESSI
- Vou botar um samba. Esse aqui não é muito bom. Mas vai assim mesmo.

 

(Samba surdinando)

 

MADAME CLESSI
- Está vendo como estou gorda, velha, cheia de varizes e de dinheiro?

 

ALAÍDE
- Li o seu diário.

 

MADAME CLESSI
-
(céptica)
Leu? Duvido! Onde?

 

ALAÍDE
-
(afirmativa)
Li, sim. Quero morrer agora mesmo, se não é verdade!

 

MADAME CLESSI
- Então diga como é que começa.
(Clessi fala de costas para Alaíde)
 

 

ALAÍDE
-
(recordando)
Quer ver? É assim...
(ligeira pausa)
"ontem, fui com Paulo a Paineiras"...
(feliz)
É assim que começa.

 

MADAME CLESSI
-
(evocativa)
Assim mesmo. É.

 

ALAÍDE
-
(perturbada)
Não sei como a senhora pôde escrever aquilo! Como teve coragem! Eu não tinha!

 

MADAME CLESSI
-
(à vontade)
Mas não é só aquilo. Tem outras coisas.

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Eu sei. Tem muito mais. Fiquei!...
(inquieta)
Meu Deus! Não sei o que é que eu tenho. É uma coisa - não sei. Por que é que eu estou aqui?

 

MADAME CLESSI
- É a mim que você pergunta?

 

ALAÍDE
-
(com volubilidade)
Aconteceu uma coisa, na minha vida, que me fez vir aqui. Quando foi que ouvi seu nome pela primeira vez?
(pausa)
Estou-me lembrando!

 

(Entra o cliente anterior com guarda-chuva, chapéu e capa. Parece boiar)

 

ALAÍDE
- Aquele homem! Tem a mesma cara do meu noivo!

 

MADAME CLESSI
- Deixa o homem! Como foi que você soube do meu nome?

 

ALAÍDE
- Me lembrei agora!
(noutro tom)
Ele está-me olhando.
(noutro tom, ainda)
Foi uma conversa que eu ouvi quando a gente se mudou. No dia mesmo, entre papai e mamãe. Deixe eu me recordar como foi. Já sei! Papai estava dizendo: "O negócio acabava..."

 

(Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde)

PAI
-
(continuando a frase)
... Numa orgia louca."

 

MÃE
- E tudo isso aqui?

 

PAI
- Aqui, então?!

 

MÃE
- Alaíde e Lúcia morando em casa de Madame Clessi. Com certeza, é no quarto de Alaíde que ela dormia. O melhor da casa!

 

PAI
- Deixa a mulher! Já morreu!

 

MÃE
- Assassinada. O jornal não deu?

 

PAI
- Deu. Eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito falado. Saiu fotografia.

 

MÃE
- No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou mandar botar fogo em tudo.

 

PAI
- Manda.

 

(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação)

 

ALAÍDE
-
(preocupada)
Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não sei. Não me lembro.

 

MADAME CLESSI
- Então vocês foram morar lá?
(nostálgica)
A casa deve estar muito velha.

 

ALAÍDE
- Estava, mas Pedro...
(excitada)
Agora me lembrei: Pedro. É meu marido! Sou casada.
(noutro tom)
Mas essa Lúcia, meu Deus!
(noutro tom)
Eu acho que estou ameaçada de morte!
(assustada)
Ele vem para cá
(refere-se ao homem solitário que se aproxima)
 

 

CLESSI
- Deixa.

 

ALAÍDE
-
(animada)
Pedro mandou reformar tudo, pintar. Ficou nova, a casa.
(noutro tom)
Ah! eu corri ao sótão, antes que mamãe mandasse queimar tudo!

 

CLESSI
- Então?

 

ALAÍDE
- Lá vi a mala - com as roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa. E encontrei o diário.
(arrebatada)
Tão lindo, ele!

 

CLESSI
-
(forte)
Quer ser como eu, quer?

 

ALAÍDE
-
(veemente)
Quero, sim. Quero.

 

CLESSI
-
(exaltada, gritando)
Ter a fama que tive. A vida. O dinheiro. E morrer assassinada?

 

ALAÍDE
-
(abstrata)
Fui à Biblioteca ler todos os jornais do tempo. Li tudo!

 

CLESSI
-
(transportada)
Botaram cada anúncio sobre o crime! Houve um repórter que escreveu uma coisa muito bonita!

 

ALAÍDE
-
(alheando-se bruscamente)
Espera, estou-me lembrando de uma coisa. Espera. Deixa eu ver! Mamãe dizendo a papai.

 

(Apaga-se o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Pai e mãe)

 

MÃE
- Cruz! Até pensei ter visto um vulto - ando tão nervosa. Também esses corredores! A alma de madame Clessi pode andar por aí... E...

 

PAI
- Perca essa mania de alma! A mulher está morta, enterrada!

 

MÃE
- Pois é...

 

(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação)

 

MADAME CLESSI
- Mas o que foi?

 

ALAÍDE
- Nada. Coisa sem importância que eu me lembrei.
(forte)
Quero ser como a senhora. Usar espartilho.
(doce)
Acho espartilho elegante!

 

CLESSI
- Mas seu marido, seu pai, sua mãe e... Lúcia?

 

HOMEM
-
(para Alaíde)
Assassina!

 

(Apaga-se o plano da alucinação. Luz no plano da realidade. Sala de operação)

 

1° MÉDICO
- Pulso?

 

2° MÉDICO
- 160.

 

1° MÉDICO
- Rugina.

 

2° MÉDICO
- Como está isso!

 

1° MÉDICO
- Tenta-se uma osteossíntese!

 

3° MÉDICO
- Olha aqui.

 

1° MÉDICO
- Fios de bronze.

 

(Pausa)

 

1° MÉDICO
- O osso!

 

3° MÉDICO
- Agora é ir até o fim.

 

1° MÉDICO
- Se não der certo, faz-se a amputação.

 

(Rumor de ferros cirúrgicos)

 

1° MÉDICO
- Depressa!

 

(Apaga-se a sala de operação. Luz no plano da alucinação)

 

HOMEM
-
(para Alaíde, sinistro)
Assassina!

 

CLESSI
-
(espantada)
O quê?

 

HOMEM
-
(indicando)
Ela! Assassina!

 

CLESSI
-
(para Alaíde)
Você?

 

ALAÍDE
-
(nervosíssima)
Não me pergunte nada. Não sei. Não me lembro.
(num lamento)
Se, ao menos; soubesse quem é Lúcia!

 

HOMEM
-
(angustiado)
Não tem ninguém aqui? Quero chope!

 

ALAÍDE
-
(em pânico)
Ele quer-me prender! Não deixe!

 

CLESSI
-
(assombrada)
Você... Matou? Você?

 

ALAÍDE
-
(desesperada)
Matei, sim. Matei, pronto!

 

HOMEM
-
(queixoso)
Meu Deus! Não tem ninguém para me servir.
(com angústia)
Ninguém!
(olha para Alaíde)
Assassina!

 

ALAÍDE
-
(patética)
Matei. Matei meu noivo.

 

HOMEM
- Ela disse - "matei meu noivo". Foi. Eu assisti.

 

ALAÍDE
- Não assistiu nada! Não tinha ninguém. Lá não tinha ninguém! E não foi meu noivo. Foi meu marido!

 

CLESSI
-
(frívola)
Marido ou noivo, tanto faz.

 

ALAÍDE
-
(histérica, para o homem)
Agora me leve, me prenda - sou uma assassina.

 

HOMEM
- Não prendo. Não tenho nada com isso!
(angustiado)
Não há ninguém para me servir?
(melancólico)
Ninguém!

 

CLESSI
- O senhor tem a cara do marido de Alaíde?

 

ALAÍDE
- Tem, sim. Ele vai dizer que não, mas tem.

 

HOMEM
- (grave) Tenho...
(O homem afasta-se. Mesa desaparece. O homem carrega a cadeira)
Quando quiser carregar o corpo, eu ajudo.
(sai)
 

 

ALAÍDE
- Ele está ali. Ali.

 

CLESSI -
(admirada)
Ele quem

 

ALAÍDE
-
(baixo)
Meu marido.

 

CLESSI
- Vivo?

 

ALAÍDE
- Morto.

 

(Alaíde guia Clessi. Aponta para um invisível cadáver)

 

ALAÍDE
- Viu?

 

CLESSI
- Estou vendo. Mas você?...

 

ALAÍDE
- Eu. Olha os pés. Assim tortos.
(faz a mímica correspondente)
 

 

(Buzina. Rumor de derrapagem. Ambulância. Alaíde e Clessi imóveis)

 

CLESSI
- Mas por que fez isso?

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Ele era bom, muito bom. Bom a toda hora e em toda parte. Eu tinha nojo de sua bondade
. (pensa, confirma)
Não sei, tinha nojo. Estou-me lembrando de tudo, direitinho, como foi. Naquele dia eu disse: "Eu queria ser Madame Clessi, Pedro. Que tal?"

 

(Apaga-se o plano da alucinação. Luz no plano da memória)

 

PEDRO
- Você continua com essa brincadeira?

 

ALAÍDE
- Brincadeira o quê? Sério!

 

PEDRO
- Não me aborreça, Alaíde!

 

ALAÍDE
- O que é que você fazia?

 

PEDRO
- Não sei.
(rápido)
Matava você.

 

ALAÍDE
-
(céptica)
Duvido. Nunca você teria essa coragem!

 

PEDRO
-
(olhando-a)
É. Não teria.

 

ALAÍDE
- Não disse? Mas se eu fugisse, se me transformasse numa Madame Clessi?

 

PEDRO
- Sei lá, Alaíde! Sei lá!

 

ALAÍDE
-
(perversa)
Ah! É assim que você responde? Pois fique sabendo...

 

PEDRO
- O quê?...

 

ALAÍDE
-
(maliciosa)
Não digo!
(cantarola “Danúbio Azul”)
 

 

PEDRO
-
(gritando)
Agora diga. Diga.

 

ALAÍDE
-
(maliciosa)
Digo o quê!

 

PEDRO
- Então não falasse!

 

(Trevas. Luz no plano da alucinação, onde já está Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(num tom sinistro e inesperado)
Tem alguém querendo me matar.

 

CLESSI
- Isso já sei. O que eu quero saber é como você matou Pedro. Como foi?

 

ALAÍDE
- Interessante. Estou-me lembrando de uma mulher, mas não consigo ver o rosto. Tem um véu. Se eu a reconhecesse!...

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