Vestido de Noiva

Read Vestido de Noiva Online

Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
2.86Mb size Format: txt, pdf, ePub
Vestido de Noiva

Nelson Rodrigues

 

 

 

 

 

 

 

 

Personagens
Alaíde
Lúcia
Pedro
Madame Clessi (Cocote de 1905)
Mulher de Véu 
Primeiro Repórter (Pimenta)
Segundo Repórter 
Terceiro Repórter
Quarto Repórter
Homem Inatual
Mulher Inatual
Segundo Homem Inatual
O Limpador (Cara de Pedro)
Homem de Capa (Cara de Pedro)
Namorado e Assassino de Clessi 
Leitora do "Diário da Noite"
Gastão (Pai de Alaíde e de Lúcia)
D. Lígia (Mãe de Alaíde e de Lúcia)
D. Laura (Sogra de Alaíde e de Lúcia)
Primeiro Médico 
Segundo Médico
Terceiro Médico
Quarto Médico
Mulher da “Paciência”
Dançarina (Lupanar)
Terceira Mulher (Lupanar)
Quatro Pequenos Jornaleiros
PRIMEIRO ATO

 

(Cenário - dividido em três planos: 1° plano: alucinação; 2° plano: memória; 3° plano: realidade. Quatro arcos no plano da memória; duas escadas laterais. Trevas)

 

(
Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio)

 

VOZ DE ALAÍDE
-
(microfone)
Clessi... Clessi...

 

(Luz em resistência no plano da alucinação. Três mesas, três mulheres escandalosamente pintadas, com vestidos berrantes e compridos. Decotes. Duas delas dançam ao som de uma vitrola invisível, dando uma vaga sugestão lésbica. Alaíde, uma jovem senhora, vestida com sobriedade e bom gosto, aparece no centro da cena. Vestido cinzento e uma bolsa vermelha)

 

ALAÍDE
-
(nervosa)
Quero falar com Madame Clessi! Ela está?

 

(Fala à 1ª mulher que, numa das três mesas, faz "paciência”. A mulher não responde)

 

ALAÍDE
-
(com angústia)
Madame Clessi está - pode-me dizer?

 

ALAÍDE -
(com ar ingênuo)
Não responde
! (com doçura)
Não quer responder?

 

(Silêncio da outra)

 

ALAÍDE -
(hesitante)
Então perguntarei
(pausa)
àquela ali

 

(Corre para as mulheres que dançam)

 

ALAÍDE
- Desculpe. Madame Clessi. Ela está?

 

(2ª Mulher também não responde)

 

ALAÍDE
-
(sempre doce)
Ah! Também não responde?

 

(Hesita. Olha para cada uma das mulheres. Passa um homem, empregado da casa, camisa de malandro. Carrega uma vassoura de borracha e um pano de chão. O mesmo cavalheiro aparece em toda a peça, com roupas e personalidades diferentes. Alaíde corre para ele)

 

ALAÍDE
-
(amável)
Podia-me dizer se madame...

 

(O homem apressa o passo e desaparece)

 

ALAÍDE
- (num desapontamento infantil) Fugiu de mim!
(no meio da cena, dirigindo-se a todas, meio agressiva)
Eu não quero nada demais. Só saber se Madame Clessi está!

 

(A 3ª mulher deixa de dançar e vai mudar o disco da vitrola. Faz toda a mímica de quem escolhe um disco, que ninguém vê, coloca-o na vitrola também invisível. Um samba coincidindo com este último movimento. A 2ª mulher aproxima-se lenta, de Alaíde)

 

1ª MULHER
-
(misteriosa)
Madame Clessi?

 

ALAÍDE
-
(numa alegria evidente)
Oh! Graças a Deus! Madame Clessi, sim.

 

2ª MULHER
-
(voz máscula)
Uma que morreu?

 

ALAÍDE
-
(espantada, olhando para todas)
Morreu?

 

2ª MULHER
-
(para as outras)
Não morreu?

 

1ª MULHER
-
(a que joga "paciência")
Morreu. Assassinada.

 

3ª MULHER
-
(com voz lenta e velada)
Madame Clessi morreu!
(brusca e violenta)
Agora, saia!

 

ALAÍDE
-
(recuando)
É mentira. Madame Clessi não morreu.
(olhando para as mulheres)
Que é que estão me olhando?
(noutro tom)
Não adianta, porque eu não acredito!...

 

2ª MULHER
- Morreu, sim. Foi enterrada de branco. Eu vi.

 

ALAÍDE
- Mas ela não podia ser enterrada de branco! Não pode ser.

 

1ª MULHER
- Estava bonita. Parecia uma noiva.

 

ALAÍDE
- (excitada) Noiva? (com exaltação) Noiva, ela?
(tem um riso entrecortado, histérico)
Madame Clessi, noiva!
(o riso, em crescendo, transforma-se em soluço)
Parem com essa música! Que coisa!

 

(Música cortada. Ilumina-se o plano da realidade. Quatro telefones, em cena, falando ao mesmo tempo. Excitação)

 

PIMENTA
- É o Diário?

 

REDATOR
- É.

 

PIMENTA
- Aqui é o Pimenta.

 

CARIOCA-REPÓRTER
- É A Noite?

PIMENTA
- Um automóvel acaba de pegar uma mulher.

 

REDATOR D'A NOITE
- O que é que há?

 

PIMENTA
- Aqui na Glória, perto do relógio.

 

CARIOCA-REPÓRTER
- Uma senhora foi atropelada.

 

REDATOR DO DIÁRIO
- Na Glória, perto do relógio?

 

REDATOR D'A NOITE
- Onde?

 

CARIOCA-REPÓRTER
- Na Glória.

 

PIMENTA
- A Assistência já levou.

 

CARIOCA-REPÓRTER
- Mais ou menos no relógio. Atravessou na frente do bonde.

 

REDATOR D'A NOITE
- Relógio.

 

PIMENTA
- O chofer fugiu.

 

REDATOR DE DIÁRIO
- O.K.

 

CARIOCA-REPÓRTER
- O Chofer meteu o pé

 

PIMENTA
- Bonita, bem vestida.

 

REDATOR D'A NOITE
- Morreu?

 

CARIOCA-REPÓRTER
- Ainda não. Mas vai.

 

(Trevas. Ilumina-se o plano da alucinação)

 

ALAÍDE
-
(trazendo, de braço, a 1ª mulher, para um canto)
Aquele homem ali. Quem é?

 

(Indica um homem que acaba de entrar e que fica olhando para Alaíde)

 

3ª MULHER
- Sei lá!
(noutro tom)
Vem aos sábados.

 

ALAÍDE
-
(aterrorizada)
Tem o rosto do meu marido.
(recua, puxando a outra)
A mesma cara!

 

3ª MULHER
- Você é casada?

 

ALAÍDE
-
(fica em suspenso)
Não sei.
(em dúvida)
Me esqueci de tudo. Não tenho memória, sou uma mulher sem memória.
(impressionada)
Mas todo o mundo tem um passado; eu também devo ter - ora essa!

 

3ª MULHER
-
(em voz baixa)
Você o que é, é louca.

 

ALAÍDE
-
(impressionada)
 Sou louca?
(com doçura)
Que felicidade!

 

2ª MULHER
-
(aproximando-se)
O que é que vocês estão conversando aí?

 

3ª MULHER
-
(para Alaíde)
Isso é aliança?

 

ALAÍDE
-
(mostrando o dedo)
É.

 

3ª MULHER
-
(olhando)
Aliança de casamento

 

2ª MULHER
- A da minha irmã é mais fina.

 

3ª MULHER
-
(céptica)
Grossa ou fina, tanto faz. (dá passos de dança)

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Oh! Meu Deus! Madame Clessi! Madame Clessi! Madame Clessi!

 

(O homem solitário aproxima-se. Alaíde afasta-se com a 3ª mulher)

 

ALAÍDE
- Ele vem aí! Digam que eu não sou daqui! Depressa! Expliquem!

 

3ª MULHER
-
(fala dançando samba)
Eu dizer o que, minha filha!

 

O HOMEM
- É nova aqui?

 

ALAÍDE
-
(modificando a atitude inteiramente)
Não, não sou nova. Não tinha me visto ainda?

 

O HOMEM -
(sério)
Não.

 

ALAÍDE
-
(excitada, mas amável)
Pois admira. Estou aqui, deixe ver. Faz uns três meses...

 

O HOMEM
- Agora me lembro perfeitamente.

 

ALAÍDE
-
(sardônica)
Lembra-se de mim?

 

O HOMEM
- Me lembro, sim.

 

ALAÍDE
-
(cortante)
Bufão!

 

O HOMEM
-
(espantado)
O quê?

 

2ª MULHER -
(apaziguadora)
Desculpe, doutor. Ela é louca
(para Alaíde)
Madame não gosta disso!

 

O HOMEM
- Por que é que põem uma louca aqui?

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Bufão, sim.
(desafiadora)
Diga se já me viu alguma vez? Diga, se tem coragem!

 

O HOMEM -
(formalizado)
Vou-me queixar à Madame. Não está direito!

 

2ª MULHER -
(para Alaíde, repreensiva)
Viu? Estou dizendo!

 

ALAÍDE
- Diga! Já me viu? Eu devia esbofeteá-lo...

 

O HOMEM
-
(oferecendo a face)
Quero ver.

 

ALAÍDE
-
(numa transição inesperada)
... Mas não quero.
(passa da violência para a doçura)
Estou sorrindo, viu? Aquilo não foi nada!
(sorri docemente)
 

 

O HOMEM
- Vamos sentar ali?

 

ALAÍDE -
(sorrindo sempre)
Estou sorrindo, sem vontade. Nenhuma. Vou com você - nem sei por quê. Sou assim.
(doce)
Vamos, meu amor?

 

O HOMEM
-
(desconfiado)
Por que é que você está vestida diferente das outras?
(as outras estão vestidas de cetim vermelho, amarelo e cor-de-rosa)
 

 

ALAÍDE
-
(doce)
Viu como eu disse - "meu amor"! Eu direi outras vezes - "meu amor" - e coisas piores! Madame Clessi está demorando!
(noutro tom)
Mas ela morreu mesmo?

 

O HOMEM -
(numa gargalhada)
Madame Clessi morreu, gorda e velha.

 

ALAÍDE
-
(num transporte)
Mentira!
(agressiva)
Gorda e velha o quê! Madame Clessi era linda.
(sonhadora)
Linda!

 

O HOMEM -
(continuando a gargalhada e sentando-se no chão)
Tinha varizes! Andava gemendo e arrastando os chinelos!

 

ALAÍDE
-
(obstinada)
Mulher gorda, velha, cheia de varizes, não é amada! E ela foi tão amada!
(feroz)
Seu mentiroso!
(Alaíde esbofeteia o homem, que corta bruscamente a gargalhada)
 

 

(A 3ª mulher vem, em passo de samba, e acaricia a cabeça do homem)

1ª MULHER
- Ele disse a verdade. Madame tinha varizes.

 

ALAÍDE
-
(sonhadora)
Depois de morta foi vestida de noiva!

 

1ª MULHER
- Bobagem ser enterrada com vestido de noiva!

 

ALAÍDE
-
(angustiada)
Madame Clessi! Madame Clessi!

 

O HOMEM -
(levantando-se, grave)
Agora vou-me embora fui esbofeteado e é o bastante.

 

ALAÍDE
-
(com uma amabilidade nervosa)
Ah! Já vai? Quer o número do meu telefone?

Other books

The Inn at the Edge of the World by Alice Thomas Ellis
Lust by Leddy Harper
Yesterday's Dust by Joy Dettman
Promises, Promises by Baker, Janice
On the Steel Breeze by Reynolds, Alastair