Authors: Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues
(Cenário - dividido em três planos: 1° plano: alucinação; 2° plano: memória; 3° plano: realidade. Quatro arcos no plano da memória; duas escadas laterais. Trevas)
(
Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio)
VOZ DE ALAÍDE
-
(microfone)
Clessi... Clessi...
(Luz em resistência no plano da alucinação. Três mesas, três mulheres escandalosamente pintadas, com vestidos berrantes e compridos. Decotes. Duas delas dançam ao som de uma vitrola invisível, dando uma vaga sugestão lésbica. Alaíde, uma jovem senhora, vestida com sobriedade e bom gosto, aparece no centro da cena. Vestido cinzento e uma bolsa vermelha)
ALAÍDE
-
(nervosa)
Quero falar com Madame Clessi! Ela está?
(Fala à 1ª mulher que, numa das três mesas, faz "paciência”. A mulher não responde)
ALAÍDE
-
(com angústia)
Madame Clessi está - pode-me dizer?
ALAÍDE -
(com ar ingênuo)
Não responde
! (com doçura)
Não quer responder?
(Silêncio da outra)
ALAÍDE -
(hesitante)
Então perguntarei
(pausa)
àquela ali
(Corre para as mulheres que dançam)
ALAÍDE
- Desculpe. Madame Clessi. Ela está?
(2ª Mulher também não responde)
ALAÍDE
-
(sempre doce)
Ah! Também não responde?
(Hesita. Olha para cada uma das mulheres. Passa um homem, empregado da casa, camisa de malandro. Carrega uma vassoura de borracha e um pano de chão. O mesmo cavalheiro aparece em toda a peça, com roupas e personalidades diferentes. Alaíde corre para ele)
ALAÍDE
-
(amável)
Podia-me dizer se madame...
(O homem apressa o passo e desaparece)
ALAÍDE
- (num desapontamento infantil) Fugiu de mim!
(no meio da cena, dirigindo-se a todas, meio agressiva)
Eu não quero nada demais. Só saber se Madame Clessi está!
(A 3ª mulher deixa de dançar e vai mudar o disco da vitrola. Faz toda a mímica de quem escolhe um disco, que ninguém vê, coloca-o na vitrola também invisível. Um samba coincidindo com este último movimento. A 2ª mulher aproxima-se lenta, de Alaíde)
1ª MULHER
-
(misteriosa)
Madame Clessi?
ALAÍDE
-
(numa alegria evidente)
Oh! Graças a Deus! Madame Clessi, sim.
2ª MULHER
-
(voz máscula)
Uma que morreu?
ALAÍDE
-
(espantada, olhando para todas)
Morreu?
2ª MULHER
-
(para as outras)
Não morreu?
1ª MULHER
-
(a que joga "paciência")
Morreu. Assassinada.
3ª MULHER
-
(com voz lenta e velada)
Madame Clessi morreu!
(brusca e violenta)
Agora, saia!
ALAÍDE
-
(recuando)
É mentira. Madame Clessi não morreu.
(olhando para as mulheres)
Que é que estão me olhando?
(noutro tom)
Não adianta, porque eu não acredito!...
2ª MULHER
- Morreu, sim. Foi enterrada de branco. Eu vi.
ALAÍDE
- Mas ela não podia ser enterrada de branco! Não pode ser.
1ª MULHER
- Estava bonita. Parecia uma noiva.
ALAÍDE
- (excitada) Noiva? (com exaltação) Noiva, ela?
(tem um riso entrecortado, histérico)
Madame Clessi, noiva!
(o riso, em crescendo, transforma-se em soluço)
Parem com essa música! Que coisa!
(Música cortada. Ilumina-se o plano da realidade. Quatro telefones, em cena, falando ao mesmo tempo. Excitação)
PIMENTA
- É o Diário?
REDATOR
- É.
PIMENTA
- Aqui é o Pimenta.
CARIOCA-REPÓRTER
- É A Noite?
PIMENTA
- Um automóvel acaba de pegar uma mulher.
REDATOR D'A NOITE
- O que é que há?
PIMENTA
- Aqui na Glória, perto do relógio.
CARIOCA-REPÓRTER
- Uma senhora foi atropelada.
REDATOR DO DIÁRIO
- Na Glória, perto do relógio?
REDATOR D'A NOITE
- Onde?
CARIOCA-REPÓRTER
- Na Glória.
PIMENTA
- A Assistência já levou.
CARIOCA-REPÓRTER
- Mais ou menos no relógio. Atravessou na frente do bonde.
REDATOR D'A NOITE
- Relógio.
PIMENTA
- O chofer fugiu.
REDATOR DE DIÁRIO
- O.K.
CARIOCA-REPÓRTER
- O Chofer meteu o pé
PIMENTA
- Bonita, bem vestida.
REDATOR D'A NOITE
- Morreu?
CARIOCA-REPÓRTER
- Ainda não. Mas vai.
(Trevas. Ilumina-se o plano da alucinação)
ALAÍDE
-
(trazendo, de braço, a 1ª mulher, para um canto)
Aquele homem ali. Quem é?
(Indica um homem que acaba de entrar e que fica olhando para Alaíde)
3ª MULHER
- Sei lá!
(noutro tom)
Vem aos sábados.
ALAÍDE
-
(aterrorizada)
Tem o rosto do meu marido.
(recua, puxando a outra)
A mesma cara!
3ª MULHER
- Você é casada?
ALAÍDE
-
(fica em suspenso)
Não sei.
(em dúvida)
Me esqueci de tudo. Não tenho memória, sou uma mulher sem memória.
(impressionada)
Mas todo o mundo tem um passado; eu também devo ter - ora essa!
3ª MULHER
-
(em voz baixa)
Você o que é, é louca.
ALAÍDE
-
(impressionada)
Sou louca?
(com doçura)
Que felicidade!
2ª MULHER
-
(aproximando-se)
O que é que vocês estão conversando aí?
3ª MULHER
-
(para Alaíde)
Isso é aliança?
ALAÍDE
-
(mostrando o dedo)
É.
3ª MULHER
-
(olhando)
Aliança de casamento
2ª MULHER
- A da minha irmã é mais fina.
3ª MULHER
-
(céptica)
Grossa ou fina, tanto faz. (dá passos de dança)
ALAÍDE
-
(excitada)
Oh! Meu Deus! Madame Clessi! Madame Clessi! Madame Clessi!
(O homem solitário aproxima-se. Alaíde afasta-se com a 3ª mulher)
ALAÍDE
- Ele vem aí! Digam que eu não sou daqui! Depressa! Expliquem!
3ª MULHER
-
(fala dançando samba)
Eu dizer o que, minha filha!
O HOMEM
- É nova aqui?
ALAÍDE
-
(modificando a atitude inteiramente)
Não, não sou nova. Não tinha me visto ainda?
O HOMEM -
(sério)
Não.
ALAÍDE
-
(excitada, mas amável)
Pois admira. Estou aqui, deixe ver. Faz uns três meses...
O HOMEM
- Agora me lembro perfeitamente.
ALAÍDE
-
(sardônica)
Lembra-se de mim?
O HOMEM
- Me lembro, sim.
ALAÍDE
-
(cortante)
Bufão!
O HOMEM
-
(espantado)
O quê?
2ª MULHER -
(apaziguadora)
Desculpe, doutor. Ela é louca
(para Alaíde)
Madame não gosta disso!
O HOMEM
- Por que é que põem uma louca aqui?
ALAÍDE
-
(excitada)
Bufão, sim.
(desafiadora)
Diga se já me viu alguma vez? Diga, se tem coragem!
O HOMEM -
(formalizado)
Vou-me queixar à Madame. Não está direito!
2ª MULHER -
(para Alaíde, repreensiva)
Viu? Estou dizendo!
ALAÍDE
- Diga! Já me viu? Eu devia esbofeteá-lo...
O HOMEM
-
(oferecendo a face)
Quero ver.
ALAÍDE
-
(numa transição inesperada)
... Mas não quero.
(passa da violência para a doçura)
Estou sorrindo, viu? Aquilo não foi nada!
(sorri docemente)
O HOMEM
- Vamos sentar ali?
ALAÍDE -
(sorrindo sempre)
Estou sorrindo, sem vontade. Nenhuma. Vou com você - nem sei por quê. Sou assim.
(doce)
Vamos, meu amor?
O HOMEM
-
(desconfiado)
Por que é que você está vestida diferente das outras?
(as outras estão vestidas de cetim vermelho, amarelo e cor-de-rosa)
ALAÍDE
-
(doce)
Viu como eu disse - "meu amor"! Eu direi outras vezes - "meu amor" - e coisas piores! Madame Clessi está demorando!
(noutro tom)
Mas ela morreu mesmo?
O HOMEM -
(numa gargalhada)
Madame Clessi morreu, gorda e velha.
ALAÍDE
-
(num transporte)
Mentira!
(agressiva)
Gorda e velha o quê! Madame Clessi era linda.
(sonhadora)
Linda!
O HOMEM -
(continuando a gargalhada e sentando-se no chão)
Tinha varizes! Andava gemendo e arrastando os chinelos!
ALAÍDE
-
(obstinada)
Mulher gorda, velha, cheia de varizes, não é amada! E ela foi tão amada!
(feroz)
Seu mentiroso!
(Alaíde esbofeteia o homem, que corta bruscamente a gargalhada)
(A 3ª mulher vem, em passo de samba, e acaricia a cabeça do homem)
1ª MULHER
- Ele disse a verdade. Madame tinha varizes.
ALAÍDE
-
(sonhadora)
Depois de morta foi vestida de noiva!
1ª MULHER
- Bobagem ser enterrada com vestido de noiva!
ALAÍDE
-
(angustiada)
Madame Clessi! Madame Clessi!
O HOMEM -
(levantando-se, grave)
Agora vou-me embora fui esbofeteado e é o bastante.
ALAÍDE
-
(com uma amabilidade nervosa)
Ah! Já vai? Quer o número do meu telefone?