Vestido de Noiva (4 page)

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Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
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PEDRO
- Isso é criancice! Agora não adianta! Já vi!

 

ALAÍDE
-
(suplicante)
Vá, Pedro, vá!

 

(Entra a mãe de Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(com um ar de sonâmbula)
O bouquet, mamãe?

 

CLESSI
- Sua mãe não pode ser.

 

(A mãe volta em marcha-à-ré)

 

CLESSI
- Ela só apareceu depois! Você sozinha no quarto, sem ninguém, Alaíde? Uma noiva sempre tem gente perto. O quê? Você pode não se lembrar, mas lá devia ter alguém, sem ser sua mãe! Lembre-se.

 

(Marcha Nupcial. Alaíde faz mímica de quem retoca a toilette. O pai e a mãe de Alaíde entram, com roupa de passeio)

 

PAI
- Tudo pronto?

 

ALAÍDE
- Quase. Vão tocar mesmo a Ave-Maria de Gounod, papai?

 

PAI
- Vão. Já falei na igreja.

 

MÃE
- Está ai D. Laura.

 

ALAÍDE
-
(virando-se)
Ah! D. Laura.

 

D. LAURA
- Como vai?

 

(Beijam-se)

 

ALAÍDE
-
(faceira, expondo-se)
Que tal a sua nora? Muito feia?

 

D. LAURA
- Linda. Um amor!

 

ALAÍDE
- Olha, papai. Desculp D. Laura.

 

D. LAURA
- Ora, minha filha.

ALAÍDE
-
(para o pai)
Ou Ave-Maria de Gounod, ou então, de Schubert. Faço questão. Outra não serve.

 

PAI
- Já sei.

 

D. LAURA
- De Schubert ou de Gounod, qualquer uma é muito bonita. Ah!

 

(D. Laura parece ter notado a presença de uma pessoa que até então não vira. Dirige-se a essa pessoa invisível, beijando-a, presumivelmente, na testa)

 

D. LAURA
- Desculpe. Eu não tinha visto você.

 

(Pausa para uma resposta que ninguém ouve)

 

D. LAURA
-
(risonha)
Quando é o seu?

 

(Pausa para uma resposta)

 

D. LAURA
-
(maliciosa)
Qual o quê? Está aí, não acredito! Tão moça, tão cheia de vida.

 

PAI
-
(para Alaíde, que está pronta)
Então vamos!

 

(D. Laura f az um gesto qualquer para a invisível pessoa e vai para junto de Alaíde)

 

D. LAURA
- Cuidado com a cauda!

 

(D. Laura apanha a imaginária cauda e entrega-a a Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(num último olhar)
Não falta mais nada?

 

MÃE
-
(olhando também)
Nada. Acho que não.

 

PAI
-
(impaciente)
Já é tarde. Vamos descer.

 

(Marcha Nupcial. Trevas)

 

 

 

 

 

 

 

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

 

(Inicia-se o segundo ato. Trevas. Voz de Alaíde e Clessi ao microfone)

 

CLESSI
- É impossível que não tenha havido mais coisas.

 

ALAÍDE
-
(impaciente com a própria memória)
Mas não me lembro, Clessi. Estou com a memória tão ruim!

 

CLESSI
- Olha, Alaíde. Antes de sua mãe entrar, quando você pediu o bouquet, tinha alguém lá? Sem ser Pedro?

 

ALAÍDE
-
(desorientada)
Antes de mamãe entrar?

 

CLESSI
- Sim. Tinha que ter mais alguém. Já disse - uma noiva nunca fica tão abandonada na hora de vestir!

 

ALAÍDE -
(como que fazendo um esforço de memória)
Antes de mamãe entrar... Só pensando. Deixa eu ver...

 

(Luz no plano da memória. Alaíde, vestida realmente de noiva, está sentada numa banqueta. Agora o espelho imaginário se transformou num espelho verdadeiro, grande, quase do tamanho de uma pessoa. A grinalda não está posta ainda. Alaíde sozinha)

 

CLESSI
-
(microfone)
Ah! Quer ver uma coisa? Quem foi que D. Laura beijou na testa, depois que falou com você?

 

(Diante do espelho, Alaíde está retocando a toilette, ajeitando os cabelos, recuando e aproximando o rosto do espelho etc)

 

CLESSI -
(microfone)
Ah! Outra coisa! Quem foi que vestiu você? Foi sua mãe? Não? Pois é, Alaíde!

 

(Luz amortecida em penumbra. Entra uma mulher, quase que magicamente. Um véu tapa-lhe o rosto. Luz normal)

 

CLESSI
-
(microfone)
Não disse que tinha que ter mais gente? Olha aí!
(noutro tom)
A mulher de véu!

 

ALAÍDE
-
(nervosa como compete a uma noiva)
Achou?

 

MULHER DE VÉU
- Não. Remexi tudo!

 

ALAÍDE
-
(agoniada)
Mas eu deixei a linha branca lá no seu quarto! Viu na cômoda?

 

MULHER DE VÉU
-
(taciturna)
Vi. Não achei nada.

 

ALAÍDE
- Na gaveta de baixo?

 

MULHER DE VÉU
- Também.

 

ALAÍDE
-
(impaciente, retocando um detalhe da toilette)
Você está tão esquisita!

 

(A mulher de véu procura ajeitar qualquer coisa no ombro de Alaíde)

 

ALAÍDE
- Quer chamar mamãe um instantinho?

 

(Silêncio)

 

ALAÍDE
-
(virando-se)
Quer chamar?

 

MULHER DE VÉU
(virando-lhe as costas)
Não. Não chamo ninguém.
(agressiva)
Vá você!

 

ALAÍDE
-
(sentida, põe rouge lentamente; vira-se outra vez para a mulher de véu)
Você tem alguma coisa!

 

MULHER DE VÉU
-
(de costas)
Eu? Não tenho nada. Nada, minha filha
(ficando de frente para Alaíde, rápida e ríspida)
Você sabe muito bem!
(violenta)
Sabe e ainda pergunta!

 

CLESSI
-
(levantando-se e apanhando a cauda)
Chega. Eu mesma vou chamar.

 

(A mulher de véu, com rápida e sinistra decisão, coloca-se na frente de Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(assombrada)
Que é isso?
(noutro tom)
Eu acho que você não está regulando bem!

 

MULHER DE VÉU
-
(intimativa)
Sente-se aí.
(as duas se enfrentam)
Não vai chamar ninguém!

 

(Maquinalmente, Alaíde senta-se na banqueta, olhando, com espanto, a mulher de véu; esta mostra-se bastante excitada)

 

ALAÍDE
-
(numa alegação ingênua)
Mas eu preciso da linha branca!

 

MULHER DE VÉU
- Primeiro, vamos conversar!
(sardônica)
Linha branca!

 

ALAÍDE
- Você vai querer discutir agora! Agora!

 

MULHER DE VÉU
-
(exaltada)
Então! Por que não será agora? Que é que tem de mais?
(noutro tom)
Eu nunca falei, nunca disse nada, mas agora você tem que me ouvir!

 

ALAÍDE
-
(gritando)
Tem gente ouvindo! Fale baixo.

 

MULHER DE VÉU
-
(excitada)
Então você pensa que podia roubar o meu namorado e ficar por isso mesmo?

 

ALAÍDE
-
(entre suplicante e intimativa)
Você não vai fazer nada!

 

MULHER DE VÉU
-
(com desprezo)
Ah! Está com medo!
(irônica)
Natural. Casamento até na porta da igreja se desmancha.

 

ALAÍDE
-
(com mais coragem)
Mas o meu, não.

 

MULHER DE VÉU
-
(aproximando-se)
O seu não, coitada!
(noutro tom)
O seu, sim! Você não me desafie, Alaíde, não me desafie.

 

ALAÍDE
-
(erguendo-se)
Então não fale nesse tom!

 

MULHER DE VÉU
-
(agressiva)
Falo, falo. E se você duvida, faço escândalo agora mesmo. Aqui, quer ver?

 

(Silêncio de Alaíde)

 

MULHER DE VÉU
-
(ameaçadora)
Se eu disser uma coisa que sei. Uma coisa que nem você sabe!

 

ALAÍDE
-
(baixo)
O que é que você sabe?

 

MULHER DE VÉU
- Se eu disser, Alaíde, duvido, e muito, que esse casamento se realize.

 

(Imobilizam-se mulher de véu e Alaíde. Depois, trevas)

 

CLESSI
-
(microfone)
Você parou quando a mulher de véu disse: "Duvido muito...

 

(Acende-se a luz. Só Alaíde e a mulher de véu, na mesma posição da cena anterior)

 

CLESSI
-
(microfone continuando)
... Que esse casamento se realize!"

 

ALAÍDE
- Mas o que foi que eu lhe fiz - diga? Para você estar assim?

 

MULHER DE VÉU
-
(exaltada)
O que foi? Sua hipócrita!

 

ALAÍDE
- Diga então o que foi!

MULHER DE VÉU
- Quer dizer que não sabia que eu estava namorando Pedro?

 

ALAÍDE
-
(mais indignada)
Aquilo, "namoro"?! Um flirt, um flirt à-toa!

 

MULHER DE VÉU
-
(mais indignada)
Você quer dizer a mim que foi flirt. Quer-me convencer?

 

ALAÍDE
-
(teimosa)
Foi.

 

MULHER DE VÉU
-
(violenta)
E aquele beijo que ele me deu no jardim também foi flirt?

 

ALAÍDE
- Sei lá de beijo! Que beijo?

 

MULHER DE VÉU
- Está vendo como você é? Viu tudo! Você apareceu no terraço e entrou logo. Mas viu!

 

ALAÍDE
-
(desesperada)
Eu não admito que você venha recordar essas coisas! Ele é meu noivo!

 

MULHER DE VÉU
-
(perversa)
Viu ou não viu?

 

ALAÍDE
- Não!

 

MULHER DE VÉU
- Viu, Sim!

 

ALAÍDE
-
(patética)
Por que é que você não protestou antes? Por que não falou na hora?

 

MULHER DE VÉU
- Porque não quis. Quis ver até onde você chegava.
(noutro tom)
Esperei por este momento.

 

(Batem na porta)

 

ALAÍDE -
(em pânico)
Olha mamãe!

 

MÃE
-
(da porta)
Alaíde!

 

MULHER DE VÉU
-
(baixo e resoluta)
Deixe que eu respondo!

 

MÃE
- Vocês abrem isso?

 

MULHER DE VÉU
-
(alto)
Já vai.
(para Alaíde, baixo)
Fique aí. Olhe o que eu lhe disse: faço um escândalo!

 

(A mulher de véu dirige-se em direção de uma presumível porta)

 

MULHER DE VÉU
-
(com naturalidade)
Já chamamos a senhora. Falta pouco.

 

MÃE
- O que é que vocês estão fazendo aí?

 

MULHER DE VÉU
- Alaíde já está quase pronta.

 

MÃE
- Abre. Eu quero ver.

 

MULHER DE VÉU
-
(com intransigência brincalhona)
Não. Só depois que acabar.

 

MÃE
- Que meninas!

 

MULHER DE VÉU
- Daqui a 5 minutos, está bem?

 

MÃE
- Então andem.

 

(Mulher de véu volta-se para junto de Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(advertindo)
Mamãe deve estar estranhando.

 

MULHER DE VÉU
- Não faz mal. Deixa!
(noutro tom)
Se você não fosse o monstro que é.

 

ALAÍDE
-
(rápida)
E você presta, talvez?

 

MULHER DE VÉU
-
(patética)
Pelo menos, nunca me casei com os seus namorados! Nunca fiz o que você fez comigo: tirar o único homem que eu amei!
(com a possível dignidade dramática)
O único!

 

ALAÍDE
- Não tenho nada com isso! Ele me preferiu a você, pronto!

 

MULHER DE VÉU
- Preferiu o quê? Você se aproveitou daquele mês que eu fiquei de cama, andou atrás dele, deu em cima. Uma vergonha!

 

ALAÍDE
-
(sardônica)
Por que você não fez a mesma coisa?

 

MULHER DE VÉU
- Eu estava doente!

 

ALAÍDE
- Por que então não fez depois? Tenho nada que você não saiba conquistar ou... Reconquistar um homem? Que não seja mais mulher, tenho?

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