Vestido de Noiva (5 page)

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Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
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MULHER DE VÉU
-
(agressiva)
O que me faltou sempre foi seu impudor.

 

ALAÍDE
-
(rápida)
E quem é que tem pudor quando gosta?

 

MULHER DE VÉU
-
(saturada)
Bem, não adianta discutir.

 

ALAÍDE
-
(agressiva)
Não adianta mesmo!

 

MULHER DE VÉU
- Mas uma coisa só eu quero que você saiba. Você a vida toda me tirou todos os namorados, um por um.

 

ALAÍDE
-
(irônica)
Mania de perseguição!

 

CLESSI -
(microfone)
Então você tirou os namorados da mulher de véu?
(pausa para uma réplica de Alaíde que ninguém ouve)
 

 

CLESSI
-
(microfone)
Também você não se lembra de nada! Procure vê-la sem véu. Ela não pode ser uma mulher sem rosto. Tem que haver um rosto debaixo do véu

 

(Pausa para outra réplica não ouvida)

 

CLESSI
-
(microfone)
Daqui a pouco você se lembra, Alaíde.

 

(Trevas. Luz no plano da realidade. Sala de operação)

 

MÉDICO
- Pulso?

 

MÉDICO
- 160.

 

1° MÉDICO
-
(pedindo)
Pinça.

 

2° MÉDICO
- Bonito corpo.

 

1° MÉDICO
- Cureta.

 

3° MÉDICO
– Casada, olha a aliança.

 

(Rumor de ferros cirúrgicos)

 

1° MÉDICO
- Aqui é amputação.

 

3° MÉDICO
- Só milagre.

 

1° MÉDICO
- Serrote.

 

(Rumor de ferros cirúrgicos) (A memória de Alaíde em franca desagregação. Imagens do passado e do presente se confundem e se superpõem. As recordações deixaram de ter ordem cronológica. Apaga-se o plano da memória. Luz nas escadas laterais. Dois homens aparecem no alto das escadas, cada um empunhando dois círios; descem, lentamente. A luz os acompanha. Um deles é gordo, ventre considerável, já entrado em anos; usa imensas barbas negras, cartola; o outro é um adolescente, lírico e magro. Ambos de negro, vestidos à maneira de 1905. Colocam os quatro círios; acendem. Depois do que, cumprimentam-se e vão se ajoelhar, diante de um cadáver invisível. Fazem o sinal da cruz com absoluta coincidência de movimentos. Os dois cavalheiros estão no plano da alucinação) (Luz no plano da memória. Alaíde e mulher de véu)

 

MULHER DE VÉU -
(continuando a frase)
... Mas com Pedro você errou.
(luz vertical sobre cada grupo)
 

 

ALAÍDE
-
(levantando-se e atravessando entre os círios com ar de deboche. Luz vertical acompanha)
Vou-me casar com ele daqui a uma hora, minha filha.

 

MULHER DE VÉU
- Pois é por isso que eu estou dizendo que você errou. Porque vai casar!

 

ALAÍDE
-
(irônica)
Ah! é? Não sabia!

 

MULHER DE VÉU
- Você roubou meus namorados. Mas vou roubar o marido.
(acintosa)
Só isso!

 

ALAÍDE
-
(numa cólera reprimida)
Vá esperando!

 

(Alaíde volta para o espelho e a mulher de véu atrás)

 

MULHER DE VÉU
- Você vai ver.
(noutro tom)
Não é propriamente roubar.

 

ALAÍDE
-
(irônica)
Então está melhorando.

 

MULHER DE VÉU
- Você pode morrer, minha filha não morre?

 

ALAÍDE
- Você quer dizer talvez que me mata?

 

MULHER DE VÉU
-
(mais a sério)
Quem sabe? (
noutro tom) (baixo)
Você acha que eu não posso matar você?

 

(Luz no plano da alucinação onde já está uma mulher, espartilhada, com vestido à 1905, e faz o sinal da cruz ante o invisível ataúde. A referida senhora, depois de cumprimentar os dois cavalheiros presentes, tira da bolsa um lencinho e chora em silêncio. Luz no plano da memória)

 

ALAÍDE
-
(afirmativa)
Você não teria coragem. Duvido!

 

MULHER DE VÉU
- Talvez não tenha coragem para matar. Mas para isso tenho!

 

(Esbofeteia Alaíde. Esta recua, levando a mão à face. Luz sobre Clessi e o namorado. Clessi numa recamier. Namorado, uniforme colegial cáqui. O rapaz tem a mesma cara de Pedro. Plano da memória)

 

CLESSI
-
(carinhosa e maternal)
Eu gosto de você porque você é criança! Tão criança!

 

FULANO
-
(suplicante)
Vai? Vamos ao piquenique, amanhã?

 

CLESSI
-
(negligente)
Onde é?

 

FULANO
- Paquetá. Todo o mundo vai na barca das dez...

 

CLESSI
- Não.

 

FULANO
-
(suplicante)
Amanhã é domingo!

 

CLESSI
-
(sem Ihe dar atenção)
Tão branco, 17 anos! As mulheres só deviam amar meninos de 17 anos!

 

FULANO
-
(sempre implorando)
Não mude de assunto! Vai?
(zangado)
Não peço mais!

 

CLESSI
-
(com doçura)
Amanhã, não. Tenho um compromisso.

 

FULANO
-
(meigo e suplicante)
E aquilo que eu lhe disse?

 

CLESSI
- Não me lembro! O quê?

 

FULANO
-
(meigo e suplicante)
Quer morrer comigo? Fazer um pacto como aqueles dois namorados da Tijuca?

 

CLESSI
-
(sempre terna)
Lindo! Tem os cabelos tão finos!

 

(Luz sobre Alaíde e a mulher de véu)

 

ALAÍDE
-
(superior)
Pode dizer o que quiser.
(irritante)
Sou eu que vou casar, não é? Então não faz mal.

 

MULHER DE VÉU
- Outra coisa: você está crente de que ele é só seu, não está?

 

(Silêncio superior de Alaíde)

 

MULHER DE VÉU
- Está mais do que crente, é claro! Pois olhe: sabe quem é esse namorado que eu arranjei? Tantas vezes vim conversar com você sobre ele! Contar cada passagem, meu Deus!
(com ironia)
Pois olhe: esse namorado era seu noivo. Seu noivo, apenas!

ALAÍDE
-
(cortante)
Mentira! Não acredito!

 

MULHER DE VÉU
-
(superior)
Então é - então é mentira!

 

ALAÍDE
-
(afirmativa)
Nunca, nunca que ele lhe daria essa confiança!

 

MULHER DE VÉU
-
(irritante)
Mas não é isso que interessa.

 

ALAÍDE
-
(agressiva)
Mentirosa!

 

MULHER DE VÉU
- O que interessa é que você vai morrer. Não sei como, mas vai e eu então... Me casarei com o viúvo. Só. Tipo da coisa natural, séria, uma mulher se casar com um viúvo.

 

(Alaíde senta-se. Mergulha o rosto entre as mãos. Luz no plano da alucinação)

 

HOMEM DE BARBA
-
(num gesto largo e voz grave, redonda oratória)
Está irreconhecível.

 

MULHER INATUAL
- Também, uma navalhada no rosto!

 

HOMEM DE BARBA
-
(descrevendo o golpe)
Pegou tudo isso aqui!

 

RAPAZ ROMÂNTICO
-
(lírico)
Foi tão bonita - nem parece!

 

(A mulher aproxima-se do invisível caixão e faz que levanta um lenço que estaria sobre o rosto de um cadáver invisível. Luz sobre Alaíde e a mulher de véu)

 

ALAÍDE
-
(ameaçadora)
Vou dizer a Pedro o que você me contou!

 

MULHER DE VÉU
- Se disser, vai ver o escândalo que eu faço! Experimente!

 

(Batem na porta)

 

MULHER DE VÉU
- Quem é?

 

MÃE
- Sou eu!

 

MULHER DE VÉU
- Agora está quase no fim.

 

MÃE
- Mas parece brincadeira!

 

MULHER DE VÉU
-
(cinicamente suplicante)
Só mais um pouquinho. Depois, nós chamamos. Está bem?

(Luz no plano da alucinação. Outro diálogo, junto ao caixão fantástico, enquanto a mulher de véu volta para junto de Alaíde)

 

MULHER INATUAL
- Que horas são?

 

HOMEM DE BARBA
-
(Consultando o relógio de corrente)
Três horas da manhã.

 

RAPAZ ROMÂNTICO
-
(patético)
Pensei que fosse mais.

 

HOMEM DE BARBA
-
(tira laboriosamente um vasto lenço, do bolso traseiro da calça) (Assoa-se estrepitosamente)
Tudo porque ela não quis ir a um piquenique.

 

MULHER INATUAL
- Dizem que tinham combinado morrer juntos. Na hora, ela não quis. Ele então...

 

HOMEM DE BARBA
- Me disseram o negócio do piquenique.

 

MULHER INATUAL
-
(filosófica)
Dizem tanta coisa! A gente nunca sabe!

 

(Luz no plano da memória. A mulher de véu aproxima-se de Alaíde, depois de apanhar a grinalda)

 

MULHER DE VÉU
-
(fria)
E a grinalda?

 

ALAÍDE
-
(recuando o corpo)
Deixe que eu ponho!

 

MULHER DE VÉU
- Eu mesma ponho. Já fiz tudo. Faço mais isso.

 

ALAÍDE
-
(com rancor, olhando-a)
Foi por isso que você pediu a mamãe para me vestir.

 

MULHER DE VÉU
-
(violenta)
Foi.

 

ALAÍDE
-
(chorosa)
E eu, boba, sem desconfiar! Também a mamãe deixou!

 

(Mulher de véu quer colocar a grinalda)

 

ALAÍDE -
(como que fugindo a um contacto repelente)
E não me toque!

 

(Batem na porta)

 

MULHER DE VÉU
-
(exasperada)
Oh! Meu Deus, será possível?

 

ALAÍDE -
(sombria)
Então você deseja minha morte!

 

PEDRO
-
(da porta)
Alaíde!

MULHER DE VÉU
-
(noutro tom)
Pedro!

 

ALAÍDE
-
(noutro tom)
Já vai, Pedro
(para a mulher de véu, ríspida)
Vá abrir.

 

MULHER DE VÉU -
(baixo)
Não diga nada do que eu lhe disse. Senão já sabe!

 

(As duas olham-se rapidamente. A mulher de véu vai abrir a porta. Alaíde coloca a grinalda)

 

PEDRO
-
(jovial)
D. Lígia está indignada. Me disse que vocês se trancaram aí e não deixam ninguém entrar.

 

CLESSI -
(microfone)
Mas que coisa fizeram com você!

 

ALAÍDE
-
(natural)
Bobagem de mamãe!

 

(A mulher de véu, fechada, permanece a distância)

 

PEDRO
-
(curvando-se)
Um beijinho!

 

ALAÍDE
-
(ainda olhando para o espelho)
Você dá ou pede?

 

PEDRO
- Peço.

 

ALAÍDE
-
(com dengue)
Assim estraga a minha pintura. E, além disso...
(Alaíde indica a mulher de véu)
 

 

PEDRO
-
(cínico)
Ela finge que não vê!

 

MULHER DE VÉU
- Até vou-me embora!

 

ALAÍDE
-
(cheia de ironia)
Ela é muito escrupulosa, Pedro! Você não imagina!

 

CLESSI
-
(microfone)
Se fosse comigo, eu desmanchava o casamento!

 

MULHER DE VÉU
-
(com lentidão calculada)
Você se lembra do que eu lhe disse, Alaíde?

 

PEDRO
-
(curioso)
O que foi?

 

ALAÍDE
- Nada. Coisa sem importância.

 

PEDRO
-
(perverso, para a mulher de véu)
Você tem namorado?

 

MULHER DE VÉU
-
(fria)
Por quê?

PEDRO
-
(cínico)
Por nada. Seu gênio é tão esquisito!

 

MULHER DE VÉU
- Tenho.
(com perversidade)
Tive. Ele vai-se casar com outra.

 

PEDRO
- Então o homem é um vilão autêntico!

 

MULHER DE VÉU
- É.

 

ALAÍDE
-
(sardônica)
Não faz mal. Ela gosta dele assim mesmo.

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