Vestido de Noiva (8 page)

Read Vestido de Noiva Online

Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
13.8Mb size Format: txt, pdf, ePub

 

LÚCIA
-
(resoluta)
Digo, sim. É muito simples. Eu disse...

 

ALAÍDE
-
(irônica)
Perdeu a coragem?

PEDRO
-
(olhando em torno)
Não tem cadeira. Então vou-me ajoelhar. Ajoelhar também descansa.

 

(Ajoelha-se diante da cruz)

 

D. LÍGIA
-
(repreensiva)
Você precisa respeitar mais a religião, Pedro!

 

(E vai-se sentar, ao lado de Pedro, de costas para a cruz)

 

ALAÍDE
-
(para Lúcia)
Diz ou não diz?

 

LÚCIA
-
(com certa relutância)
O que eu disse, mamãe, é que a senhora... Transpira muito. Demais! Pronto!
(para Alaíde)
Viu como eu disse?

 

D. LÍGIA
-
(abanando-se com mais força)
Mas, minha filha! Você teve coragem... Oh! Lúcia!

 

ALAÍDE
-
(na sua cólera)
Mas não foi só isso!

 

(Escurecimento total. Voz de Clessi ao microfone)

 

CLESSI
- Por que você parou no meu caso, Alaíde?

 

(Réplica que ninguém ouve)

 

CLESSI
-
(impaciente)
Já sei! Depois você conta isso! Mas primeiro minha conversa com ele! Era tão parecido com o meu filho, mas tão! E os olhos, Alaíde! Aquele jeito de sorrir! Que é que trazia mais o jornal?

 

(Luz no plano da alucinação)

 

ALAÍDE
-
(cruel)
E aquela história, "aquilo" que você disse?

 

D. LÍGIA
-
(levantando um dos braços e abanando na altura das axilas)
Chega, Alaíde! Chega! Uma filha, meu Deus!

 

LÚCIA
- Aquilo o quê?

 

PEDRO
-
(ajoelhado)
Deixe ela dizer, D. Lígia. Está tão interessante!

 

ALAÍDE
-
(agressiva)
Não se lembra?

 

LÚCIA
-
(resoluta)
Agora me lembro! Eu também falei, mamãe, que quando a senhora começa a transpirar, a senhora é minha mãe, mas eu não posso! Não está em mim. Tenho que sair de perto!

(Ao mesmo tempo que fala, aproxima-se de D. Lígia e senta-se ao seu lado)

 

ALAÍDE
-
(triunfante)
Isso mesmo! Viu, mamãe?

 

(Alaíde também vem se sentar, ficando ao lado de Pedro) (Trevas. Luz sobre namorado e Clessi)

 

CLESSI
-
(insistente)
Aceite. Não tem nada de mais isso! Tão natural!

 

NAMORADO
-
(relutante)
Não. Eu sei como você é!

 

CLESSI
- Mas seu pai não tirou a mesada por minha causa? Então?
(noutro tom)
Assim eu fico zangada!

 

NAMORADO
-
(relutante)
Para depois você dizer: "aceito dinheiro meu." Pensa que me esqueço?

 

CLESSI
- Aquilo foi brincadeira! Pensou que eu estivesse falando sério?

 

NAMORADO
-
(vencido)
Então depois eu devolvo. Só assim.

 

CLESSI
- Está bom. Que menino!
(noutro tom)
Agora vá, meu filho!

 

NAMORADO
-
(amargo)
Não precisa me enxotar! Eu vou.

 

CLESSI
-
(conciliatória)
Você sabe por quê! Daqui a pouco o desembargador chega!

 

NAMORADO
-
(enciumado)
Viu?

 

CLESSI
- O quê?

 

NAMORADO
-
(amargo)
Eu não tenho nem coragem de reclamar, depois que aceitei coisas de você.

 

CLESSI
-
(explicando)
Você sabe que ele é um velho amigo!

 

NAMORADO
-
(animado)
Só isso? Jura!

 

CLESSI
-
(categórica)
Então! Me conheceu menina!

 

NAMORADO
-
(num repente sinistro)
Eu acabo matando você por causa desse desembargador! Você vai ver!

 

(Entra a mãe do namorado, vestida à maneira de 1905)

 

NAMORADO
-
(em pânico)
Mamãe!

 

(Clessi levanta-se)

 

MÃE
-
(com raiva concentrada)
Eu bem sabia! Tinha a certeza que você estava aqui!

 

NAMORADO
- A senhora vai fazer o quê?

 

MÃE
-
(autoritária)
Vá para casa, Alfredo!

 

CLESSI
- (
doce)
Vá. Sua mãe está mandando!
(O namorado sai, depois de tomar a bênção materna)
 

 

MÃE
-
(num largo gesto, visivelmente caricatural, trêmulo na voz)
A senhora é que é madame Clessi?

 

CLESSI -
(humilde)
Sou. A senhora não quer sentar-se?

 

MÃE
-
(em tom de dramalhão)
Não. Estou bem assim.
(exageradíssima)
Sou a mãe de Alfredo Germont.

 

CLESSI -
(humilde)
Eu sei.

 

MÃE
-
(com tremura na voz)
Então a senhora não tem consciência?

 

CLESSI
-
(chocada, mas doce)
Eu?

 

MÃE
-
(cada vez mais patética)
A senhora, sim. Então isso se faz? Com uma criança?

 

CLESSI -
(suave e dolorosa)
Mas que culpa tenho eu?

 

MÃE
- Que culpa!
(noutro tom)
Um menino, uma verdadeira criança, chegando em casa às duas, três, quatro horas da manhã! A senhora não vê?

 

(Trevas. Voz de Alaíde)

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Mas eu estou confundindo tudo outra vez, minha Nossa Senhora! Alfredo Germont é de uma ópera! Traviata. Foi Traviata! O pai do rapaz veio pedir satisfações à mocinha. Como ando com a cabeça, Clessi!

 

(Luz no plano da memória. Clessi e mãe do namorado. Tom diferente de representação, mas ainda caricatural)

 

CLESSI
-
(choramingando)
O olhar daquele homem despe a gente!

 

MÃE
-
(com absoluta falta de compostura)
Você exagera, Scarlett!

 

CLESSI
- Rett é indigno de entrar numa casa de família!

 

MÃE
-
(cruzando as pernas; incrível falta de modos)
Em compensação, Ashley é espiritual demais. Demais! Assim também não gosto.

 

CLESSI -
(chorando, despeitada)
Ashley pediu a mão de Melânie! Vai-se casar com Melânie!

 

MÃE
-
(saliente)
Se eu fosse você, preferia Rett
(noutro tom)
Cem vezes melhor que o outro!

 

CLESSI -
(chorosa)
Eu não acho!

 

MÃE
-
(sensual e descritiva)
Mas é, minha filha! Você viu como ele é forte? Assim! Forte mesmo!

 

(Trevas)

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Você está vendo, Clessi? Outra vez. Penso que estou contando o seu caso, contando o que li nos jornais daquele tempo sobre o crime, e quando acaba, misturo tudo! Misturo Traviata... E o vento levou... Com o seu assassínio! Incrível.
(pausa)
Não é?

 

(Luz no plano da memória. Clessi e mãe do namorado já em atitude normal)

 

MÃE
-
(ameaçadora)
É a última vez que eu pergunto. Desiste ou não desiste?

 

CLESSI
-
(com doçura)
Peça tudo, tudo, menos isso. Isso, não.

 

MÃE
-
(agressiva)
Então vou entregar o caso à polícia. Aí quero ver.

 

CLESSI
-
(sonhadora)
Tenho chorado tanto!
(noutro tom)
Nunca tive um amor. É a primeira vez. A senhora, se já amou, compreenderá.

 

MÃE
-
(perdendo a cabeça)
Indigna!

 

CLESSI -
(com a mesma doçura)
Eu sei que sou. Sei
(rindo e chorando)
Se a senhora visse como ele se zanga, quando eu falo no desembargador!

 

MÃE
-
(tapando o rosto com a mão)
Meu filho metido com uma mulher desmoralizada! Conhecida!

 

CLESSI
-
(no mesmo tom de abstração, senta-se)
Então quando eu boto dinheiro no bolso dele!

 

MÃE
- Mentirosa!

 

CLESSI
-
(sempre doce)
Ele, tão cheio de dedos para aceitar!

 

MÃE
- Vou falar com meu marido!
(ameaçadora)
Ah! Se isso for verdade!

 

(Vai saindo, mas Clessi muda de atitude e grita violentamente)

 

CLESSI
- Olha!
(Mãe, pára, atônita)
Você, sim!
(Aproxima-se, agressiva, da mãe, que recua, em pânico)
Se vier outra vez à minha casa, corro com você daqui!

 

MÃE
-
(as duas, face a face) (Acovardando-se)
Mas que é isso?

 

CLESSI
-
(violenta)
Eu não sou direita, mas digo. Não escondo. Está ouvindo? Saia, já!

 

(Sai a mãe alarmada. Trevas. Luz no plano da realidade. Redação e sala de imprensa)

 

1° FULANO
-
(berrando)
Diário!

 

2° FULANO
-
(berrando)
Me chama o Osvaldo?

 

1° FULANO
- Sou eu.

 

2° FULANO
- É Pimenta. Toma nota.

 

1° FULANO
- Manda.

 

2° FULANO
- Alaíde Moreira, branca, casada, 25 anos. Residência, Rua Copacabana. Olha...

 

1° FULANO
- Que é?

 

2° FULANO
- Essa zinha é importante. Gente rica. Mulher daquele camarada, um que é industrial, Pedro Moreira.

 

1° FULANO
- Sei, me lembro. Continua.

 

2° FULANO
- Afundamento dos ossos da face. Fratura exposta do braço direito. Escoriações generalizadas. Estado gravíssimo.

 

1° FULANO
- ... Generalizadas. Estado gravíssimo.

 

2° FULANO
- O chofer fugiu. Não tomaram o número. Ainda está na mesa de operação.

 

(Trevas. Luz no plano da alucinação. Estão Alaíde e Clessi imóveis. Rumor de derrapagem. Grito de mulher. Ambulância)

 

CLESSI
- O que é que ela disse mais no jornal?

 

ALAÍDE
- Disse que você tinha dito: "Saia, já." Que ela teve medo de ser assassinada!

 

CLESSI
- No dinheiro que eu dava não tocou?

 

ALAÍDE
- Quem falou ao repórter no dinheiro foi a criada!

 

CLESSI
-
(sardônica)
Imagine!

 

ALAÍDE
-
(nervosa)
Ele vem aí, Clessi! Pedro!

 

CLESSI
- Mas você não tinha assassinado ele?

 

ALAÍDE
- Pensei que tivesse. Mas deve ter sido sonho! Olha ele!

 

(Entra Pedro, de luto. Alaíde vai ao seu encontro, sorrindo)

 

ALAÍDE
- Dá licença, Clessi?
(para Pedro, de luto)
Então, meu filho?
(beijam-se)
 

 

PEDRO
-
(admirado, confidencial)
Quem é ela?

 

ALAÍDE
-
(como quem se escusa)
Ah! É mesmo! Me esqueci de apresentar! Clessi, Madame Clessi! Aqui, meu marido!

 

PEDRO
-
(amável)
A senhora é uma que foi assassinada?

 

CLESSI
- Pois não.

 

ALAÍDE
- Foi, sim. Em 1905. Aquela que eu lhe contei, Pedro.

 

PEDRO
- Eu me lembro perfeitamente. O namorado era um colegial, não é? Deu uma punhalada?

 

CLESSI
-
(sonhadora)
De dia, usava uniforme cáqui. De noite, não.

 

ALAÍDE
- Agora quer dar licença, Clessi?

 

CLESSI
- Claro.

 

ALAÍDE
- Preciso falar com Pedro uma coisa. Depois chamo você.

 

PEDRO
-
(para Clessi, que sai, cínico)
Apareça!

 

(Clessi, antes de sair, ainda se vira para ele e cumprimenta)

 

PEDRO
-
(com súbita irritação)
Que negócio é esse de você andar falando com Madame Clessi?

 

ALAÍDE
-
(atarantada)
Que é que tem demais, meu filho?

Other books

Indignation by Celinda Santillan
Famine by John Creasey
A Home by the Sea by Christina Skye
Nekropolis by Maureen F. McHugh
The Faith Instinct by Wade, Nicholas
Blood and Kisses by Shah, Karin
Forbidden (Scandalous Sirens) by Templeton, Julia, Cooper-Posey, Tracy