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Authors: Nelson Rodrigues

Vestido de Noiva (6 page)

BOOK: Vestido de Noiva
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MULHER DE VÉU
- E gosto, sim. Ninguém tem nada com isso!

 

PEDRO
-
(já para sair)
Deixem D. Lígia entrar, antes que ela chore.

 

ALAÍDE
-
(ríspida)
Mamãe é muito boba. Ainda pede licença para entrar no quarto da filha! Fica do lado de fora, implorando!

 

PEDRO
- Está quase na hora. Temos que andar depressa; depois do nosso, há outro casamento.

 

ALAÍDE
-
(queixosa)
Quer dizer que o outro casamento vai aproveitar a nossa ornamentação?

 

PEDRO
-
(displicente)
Deixa. Não tem importância.

 

ALAÍDE
-
(queixosa)
Ah! Pedro!

 

PEDRO
- Que foi?

 

ALAÍDE
-
(virando-se de costas com dengue)
Me esqueci que faz mal o noivo ver a noiva antes. Não é bom.

 

PEDRO
-
(com bom humor)
Isso é criancice! Agora não adianta! Já vi! '

 

ALAÍDE
- Vá, Pedro, vá!

 

(Imobilizam-se e emudecem Alaíde e a mulher de véu)

 

CLESSI
-
(microfone)
Bem. O resto já sei, Alaíde. (noutro tom) O quê?

 

(Parece ouvir um aparte que ninguém ouve)

 

CLESSI
-
(microfone)
Ah, você tinha pulado outra coisa? Que foi?

 

MULHER DE VÉU
- Nós somos três cínicos: eu, você e ele. Você ainda é pior, porque quer ser inocente até o fim.

 

ALAÍDE -
(com raiva concentrada)
É melhor eu calar minha boca!

 

MULHER DE VÉU
- Ele tão natural, perguntando: "Você tem namorado?" Que idéia ele faz de nós, meu Deus!

 

ALAÍDE
-
(revoltada)
Eu sei que idéia!

 

MULHER DE VÉU
-
(veemente)
De mim, que sou uma pervertida! De você, que é uma idiota!
(sardônica)
Em todo o caso, prefiro mil vezes ser pervertida do que idiota!

 

ALAÍDE
-
(indignada)
Você ainda acha preferível! Ainda diz que é!

 

MULHER DE VÉU
-
(sardônica)
Claro, minha filha! Então não é? "Deixem D. Lígia entrar"... Como ele é infame, esse noivo que você arranjou!

 

ALAÍDE
-
(irônica)
Assim mesmo você gosta dele!

 

MULHER DE VÉU
- Gosto. Amo. Mas gosto sabendo o que ele é e por isso mesmo. Mas você... Ah, meu Deus. Aposto que não acredita em nada do que eu contei.

 

ALAÍDE
-
(enfurecida)
E não acredito!

 

(Trevas para que novas personagens entrem no plano da memória)

 

CLESSI -
(microfone)
Ah, então a pessoa que D. Laura beijou na testa, a tal que você não se lembrava quem era, é a mulher de véu? O que foi que as duas disseram naquela hora, Alaíde?

 

(Luz no plano da memória. A cena do quarto de Alaíde, no ponto em que dona Laura, já vestida de grande gala, está falando a uma pessoa, que é a mulher de véu. Presente o pai e a mãe de Alaíde, também vestidos para a cerimônia)

 

D. LAURA
-
(para a mulher de véu, que está um pouco retirada)
Desculpe. Eu não tinha visto você.

 

MULHER DE VÉU
- Não faz mal.

 

(D. Laura beija-a na testa)

 

D. LAURA
-
(risonha)
Quando é o seu?

 

MULHER DE VÉU
- Tem tempo!
(noutro tom) (com certa amargura)
Nunca!

D. LAURA
-
(maliciosa)
Qual o quê! Está aí, não acredito! Tão moça, tão cheia de vida!

 

PAI
-
(para Alaíde, que está pronta)
Então, vamos.

 

(Som da Marcha Nupcial. D. Laura faz um gesto qualquer para a mulher de véu e vai para junto de Alaíde)

 

D. LAURA
-
(solícita)
Cuidado com a cauda!
(apanha a cauda, que entrega a Alaíde)
 

 

ALAÍDE
-
(num último olhar)
Não falta mais nada?
(todos olham, estando situados como no final do 1° ato)
 

 

MÃE
-
(olhando em torno)
Não. Acho que não.

 

PAI
-
(impaciente)
Já é tarde! Vamos descer!

 

(Ao som da Marcha Nupcial, saem os personagens do casamento. Fica a mulher de véu, numa atitude patética. Luz amortecida. Os dois homens do velório cochicham e afastam-se um pouco para fumar. Acendem o cigarro num dos círios e fumam)

 

CLESSI
-
(microfone)
Então a mulher de véu não foi?

 

ALAÍDE
-
(idem)
Não.

 

CLESSI
-
(idem)
Por quê?

 

ALAÍDE
-
(idem)
Não quis ir. De maneira nenhuma. Não sei quem me contou depois que, enquanto nós esperávamos no salão a hora de sair, mamãe voltou para buscar a mulher de véu.

 

(Luz normal no plano da memória. Entra D. Lígia apressada. A mulher de véu, na mesma posição)

 

MÃE
- Você ainda está aí? Todo o mundo já desceu!

 

MULHER DE VÉU
- Eu não vou. Eu fico!

 

MÃE
-
(surpresa)
O que é que você tem?

 

MULHER DE VÉU -
(de costas)
Nada.

 

MÃE
-
(desconfiada)
Vocês duas brigaram?

 

MULHER DE VÉU
-
(impaciente)
Não sei, não sei.

 

MÃE
- Vamos! Não seja assim!

 

MULHER DE VÉU
- Não vou, não adianta. Está perdendo seu tempo.

 

MÃE
-
(olhando-a, chocada)
Mas não vai por quê?

 

MULHER DE VÉU
- (com raiva concentrada) Porque não, ora essa!
(noutro tom) (de frente)
Vou lá ao casamento dessa mulher!

 

MÃE
-
(sentida)
Oh! Isso é termo "Mulher"?

 

MULHER DE VÉU
-
(sardônica)
Não tenho outro!

 

MÃE
- Que foi isso, de repente? Vocês, tão amigas!

 

MULHER DE VÉU
-
(com amargura)
Amigas, nós? Oh! Meu Deus! Como se pode ser tão cega!
(noutro tom)
Eu ir a esse casamento, quando eu é que devia ser a noiva!

 

MÃE
-
(em pânico)
Você está doida?

 

MULHER DE VÉU
-
(violenta)
Eu, sim senhora, eu!

 

MÃE -
(suspensa)
Você gosta de Pedro!
(pausa; as duas se olham)
Então é isso?

 

MULHER DE VÉU
-
(sardônica)
A senhora pensava que fosse o quê?

 

(Luz no plano da alucinação. A mulher inatual, junto ao esquife, levanta o lenço para ver a fisionomia da morta invisível. Faz uma mímica de piedade. Alaíde e Clessi aparecem no alto de uma das escadas laterais, sentadas num degrau. Penumbra no velório)

 

CLESSI
- Você parece maluca!

 

ALAÍDE
-
(ao lado de Clessi)
Eu?

 

CLESSI
- Você está fazendo uma confusão! Casamento com enterro!... Moda antiga com moda moderna! Ninguém usa mais aquele chapéu de plumas, nem aquele colarinho!

 

ALAÍDE
-
(agoniada)
Tudo está tão, embaralhado na minha memória! Misturo coisa que aconteceu e coisa que não aconteceu. Passado com o presente.
(num lamento)
É uma misturada!

 

CLESSI
-
(impaciente)
Você fala tanto nessa mulher que morreu! Ela é o que, afinal?

 

ALAÍDE
-
(agoniada)
Pois é, não posso me lembrar. Não consigo! Só me lembro que estavam fazendo quarto a uma senhora com um chapéu de plumas, espartilho, e dois homens com bigodes, pastinha e colarinho alto.

 

CLESSI
- Essa moda é antiga. Então isso foi há muito tempo.

 

ALAÍDE
-
(fazendo um esforço de memória)
Estou vendo se me lembro de mais alguma coisa...

 

(O homem de barba fala, agora, sentado no chão com a mulher inatual, em franco idílio)

 

HOMEM DE BARBA
- Clessi nem podia pensar que hoje estaria morta!'

 

CLESSI
-
(no alto da escada, levantando-se e descendo)
Clessi...
(com espanto e medo)
Clessi!...

 

ALAÍDE
-
(triunfante, levantando-se também e descendo)
Agora me lembro! De tudo, tudinho! Seu nome! É você - a morta é você!

 

(Alaíde e Clessi aproximam-se do esquife)

 

CLESSI
-
(apontando para o seu próprio cadáver invisível) (Com melancolia)
Você não tinha meio de se lembrar! E eu aqui!

 

ALAÍDE
-
(excitada)
É isso mesmo! Eu estava tão confusa! Mas agora sei. Li tudo isso na Biblioteca Nacional. Vi todas as notícias sobre o crime. O repórter descrevia tudo, até as pessoas que fizeram quarto, de madrugada...

 

CLESSI
-
(com melancolia)
Teve muita gente no meu enterro?

 

ALAÍDE
-
(com exaltação)
Muita! De manhã, começou a chegar gente...

 

CLESSI
-
(vaidosa)
Quanto mais ou menos?

 

(O homem de barba aproxima-se do rapaz romântico)

 

HOMEM DE BARBA
- Só nós aqui?

 

RAPAZ ROMÂNTICO
- Mas deixa chegar 7 horas! Vai ver como fica isso!

 

HOMEM DE BARBA
-
(consultando o relógio de corrente)
Ainda são 4 horas.

 

(Clessi e Alaíde sentadas junto aos dois círios)

 

CLESSI
-
(doce)
Enterro de anjo é mais bonito do que de gente grande.

ALAÍDE
- Então mamãe disse à mulher de véu...

 

CLESSI
-
(repreensiva)
A gente está falando numa coisa e vem você com outra muito diferente!

 

(Luz no plano da memória. Dona Lígia e a mulher de véu. A mulher de véu arranca o véu)

 

MÃE
- Já disse para você não chamar sua irmã de mulher, Lúcia!

 

LÚCIA
-
(exaltadíssima)
Chamo, sim! Mulher, mulher e mulher!

 

MÃE
- Vou chamar seu pai! Você não me respeita!

 

LÚCIA
-
(desafiante)
Pode chamar!
(noutro tom)
Bater em mim, ele não vai!

 

MÃE
- Isso é coisa que se faça! Rogar praga para sua irmã!

 

LÚCIA
- Então! Depois do que ela me fez!

 

MÃE
-
(indo sentar-se na banqueta, patética)
A gente tem filhos...

 

LÚCIA -
(interrompendo com violência)
Eu mandei a senhora me botar no mundo, mandei?

 

MÃE
-
(com lágrimas, explodindo)
E, depois, é isso!

 

(Entra o pai de Alaíde. Dona Lígia levanta-se, rápido. Lúcia assume uma atitude discreta. O pai vem furioso)

 

PAI
-
(gritando)
Vocês vêm ou não vêm?

 

MÃE
- Vou, sim.
(disfarçando)
Estava aqui conversando...

 

PAI
-
(azedo)
Isso é hora de conversar!?...

 

(Sai Dona Lígia)

 

PAI
- E você? Não vem?

 

LÚCIA
- Não. Eu fico...

 

PAI
-
(estranhando)
Por quê?

 

LÚCIA
- Não estou me sentindo bem. Se for, vou desmaiar na igreja.

 

PAI
-
(furioso)
Está bem.

 

(Sai. Lúcia senta-se na banqueta. Luz no plano da alucinação)

 

ALAÍDE
-
(evocativa)
Você foi apunhalada por um colegial.

 

CLESSI
-
(admirada)
Quer dizer que Lúcia e a mulher de véu são a mesma pessoa!

 

ALAÍDE
-
(sempre evocativa)
... Um menino de 17 anos matou você.
(abstrata)
27 de novembro de 1905. Até a data eu guardei!

 

CLESSl
-
(doce)
Irmãs e se odiando tanto! Engraçado - eu acho bonito duas irmãs amando o mesmo homem! Não sei, mas acho!...

 

ALAÍDE
- Você acha?

 

CLESSI
-
(a sério)
Acho.

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