Authors: Nelson Rodrigues
PEDRO
-
(com veemência)
Ela não é direita! Não quero essas relações!
ALAÍDE
-
(exaltando-se)
Ela não é direita! E você é "direito", é? Você pensa que eu não sei de nada? Pensa mesmo?
PEDRO
-
(espantado)
Não sabe o quê?
ALAÍDE
-
(excitada)
Que você e Lúcia...
(ameaçadora)
Sim, você e Lúcia! Andam desejando a minha morte!
PEDRO
-
(virando-lhe as costas)
Você está doida.
ALAÍDE
- Doida, eu! Você sabe que não! Então eu não vejo?
PEDRO
-
(volta a ficar de frente)
O que é que você vê?
ALAÍDE
- Vocês cochichando! Eu apareço
(sardônica)
vocês arranjam logo um assunto diferente, muito diferente, ficam tão naturais.
PEDRO
-
(irônico)
Você tem imaginação, minha filha!
ALAÍDE
- Dia e noite, desejando que eu morra! Eu sei para que é! Para se casarem depois da minha morte!
PEDRO
-
(num tom especial)
Então você acha?... Sério?...
ALAÍDE
-
(numa excitação progressiva)
Já planejaram tudo! Todo o crime! Assassinato sem deixar vestígios!
PEDRO
-
(sardônico)
Autêntico crime perfeito!
CLESSI
-
(microfone)
Que dois! Planejando um crime!
ALAÍDE
-
(sempre excitada)
Ainda por cima se faz de inocente! Mas eu pego vocês dois - direitinho! Deixa estar!
(Lúcia entra, como uma aparição. Vem de luto fechado)
LÚCIA
- Ah! Vocês estão aí?
ALAÍDE
-
(triunfante)
Pronto! Chegou a cúmplice! Vocês estão tão certos da minha morte que até já botaram luto!
LÚCIA
-
(inocente)
O que é que há?
PEDRO
-
(apontando para a testa)
É Alaíde que não está regulando bem!
ALAÍDE
-
(fremente, para Lúcia)
Venha repetir para meu marido aquilo que você disse, "aquilo"! No dia do meu casamento!
LÚCIA
- Sei lá de que é que você está falando?
CLESSI -
(microfone)
Irmã assim é melhor não ter!
ALAÍDE
- Sabe, sim. Sabe! Aquela insinuação que você fez... Que eu podia morrer!
LÚCIA
-
(virando-lhe as costas)
Você está sonhando, minha filha. Disse coisa nenhuma!
ALAÍDE
- Covarde! Agora está com medo! Mas disse, disse a mim!
PEDRO
- Mas se ela nega, Alaíde!
LÚCIA
-
(noutra atitude)
Pois disse! Pronto! Disse! E agora?
ALAÍDE
-
(patética)
Então me mate! Por que não me matam? Estamos sozinhos! Depois vocês escondem o meu corpo debaixo de qualquer coisa!
(e, à medida que ela fala, os três se aproximam, juntam as cabeças)
(As cabeças baixam, seguindo o ritmo das palavras)
PEDRO
-
(sinistro)
Agora, não! Tem tempo!
(Quando ele acaba, tem-se a impressão plástica de um bouquet de cabeças. Trevas. Luz no plano da realidade: rumor de f erros cirúrgicos)
1° MÉDICO
- Pulso?
2° MÉDICO
- Incontável... Não reage mais!
1° MÉDICO
- Colapso!
3° MÉDICO
- Pronto!
(Um dos médicos está cobrindo o rosto de uma mulher. Saem os médicos lentamente, um deles tirando a máscara. Marcha Fúnebre. Trevas. Luz no plano da alucinação. Alaíde e Clessi de costas para a platéia. Alaíde com um bouquet, no qual está dissimulado o microfone. Luz no plano da realidade: botequim e redação)
PIMENTA
-
(berrando)
Morreu a fulana.
REPÓRTER
-
(berrando e tomando nota)
Qual?
PIMENTA
- A atropelada da Glória.
REPÓRTER
- Que mais?
PIMENTA
- Chegou aqui em estado de choque. Morreu sem recobrar os sentidos; não sofreu nada.
REPÓRTER
- Isso é o que você não sabe!
PIMENTA
- A irmã chora tanto!
REPÓRTER
- Irmã é natural!
PIMENTA
- Um chuchu!
REPÓRTER
- Quem?
PIMENTA
- A irmã.
(Trevas. Luz no piano da realidade: Lúcia e Pedro. Lúcia chorando. Coroas. Luz também no plano irreal)
ALAÍDE
- Quem terá morrido ali, naquela casa?
CLESSI
- Olha! Uma fortuna em flores!
ALAÍDE
- Enterro de gente rica é assim.
CLESSI
- O meu também teve muita gente, não teve?
ALAÍDE
- Pelo menos, o jornal disse.
(No plano da realidade)
PEDRO
-
(em voz baixa)
Lúcia!
LÚCIA
-
(tomando um choque, levantando-se)
Que é? Que horas são?
PEDRO
- Três horas.
LÚCIA
- Fique longe de mim! Não se aproxime!
PEDRO
- Mas que é isso?
LÚCIA
-
(com ódio concentrado)
Nunca mais! Nunca mais quero nada com você! Juro!
PEDRO
- Você enlouqueceu? O que é que eu fiz?
LÚCIA
-
(obstinada)
Jurei diante do corpo de Alaíde!
PEDRO
-
(chocado)
Você fez isso?
LÚCIA
-
(com decisão)
Fiz. Fiz, sim. Quer que eu vá na sala e jure outra vez?
(mergulha a
cabeça entre as mãos)
Ontem, antes dela sair para morrer, tivemos uma discussão horrível!
PEDRO
-
(baixo)
Ela sabia?
LÚCIA
-
(patética)
Sabia. Adivinhou o nosso pensamento. E eu disse.
PEDRO
- Mas comigo nunca tocou no assunto.
LÚCIA
- Discutimos quantas vezes! Ameacei-a de escândalo. Mas ontem, foi horrível, horrível! Sabe o que ela me disse? "Nem que eu morra, deixarei você em paz!"
(Lúcia fala com a cabeça entre as mãos. Alaíde responde através do microfone escondido no bouquet. Luz cai em penumbra, durante todo o diálogo evocativo)
ALAÍDE
-
(com voz lenta e sem brilho)
Nem que eu morra, deixarei você em paz!
LÚCIA
-
(falando surdamente)
Pensa que eu tenho medo de alma do outro mundo?
ALAÍDE
-
(microfone)
Não brinque, Lúcia! Se eu morrer, não sei se existe vida depois da morte, mas se existir, você vai ver!
LÚCIA
-
(sardônica)
Ver o quê, minha filha?
ALAÍDE
-
(microfone)
Você não terá um minuto de paz, se casar com Pedro! Eu não deixo, você verá!
LÚCIA
-
(irônica)
Está tão certa assim de morrer?
ALAÍDE
-
(microfone)
Não sei! Você e Pedro são capazes de tudo! Eu posso acordar morta e todo o mundo pensar que foi suicídio.
LÚCIA
- Quem sabe?
(noutro tom)
Eu mandei você tirar Pedro de mim?
ALAÍDE
-
(microfone)
Mas que foi que eu fiz, meu Deus?
LÚCIA
-
(sardônica)
Nada!
ALAÍDE
-
(microfone)
Fiz o que muitas fazem. Tirar um namorado! Quer dizer, uma vaidade...
(com veemência)
Você, não! Você e Pedro querem-me matar. Isso, sim, é que é crime, não o que eu fiz!
LÚCIA
-
(irritante)
Mas conquistou Pedro tão mal que ele anda atrás de mim o dia todo!
ALAÍDE
-
(microfone)
Sabe para onde eu vou agora?
LÚCIA
- Não me interessa!
ALAÍDE
- E nem digo, minha filha! Vou ter uma aventura! Pecado. Sabe o que é isso? Vou visitar um lugar e que lugar! Maravilhoso! Já fui lá uma vez!
LÚCIA
-
(sardônica)
Imagino!
ALAÍDE -
(com provocação)
Na última vez que fui, tinha duas mulheres dançando. Mulheres com vestidos longos, de cetim amarelo e cor-de-rosa. Uma vitrola. Olha: querendo, pode dizer a Pedro. Não me incomodo. Até é bom!
LÚCIA
-
(sardônica)
Mentirosa!
ALAÍDE
-
(microfone)
Ah! Sou?
LÚCIA
-
(afirmativa, elevando a voz)
É! Não foi lá, nunca! Nunca! Tudo isso que você está contando, as duas mulheres, os vestidos de cetim, a vitrola, você leu num livro que está lá em cima! Quer que eu vá buscar? Quer?
ALAÍDE
-
(microfone)
Está bem, Lúcia. Não fui, menti.
(dolorosa)
LÚCIA
-
(cruel)
Você podia ir e ficar por lá!
ALAÍDE
-
(microfone)
Ouça bem. Eu posso morrer cem vezes, mas você não se casará com Pedro.
(Luz volta a ser normal)
LÚCIA
-
(impressionadíssima, agora para Pedro)
Agora, quando penso em Alaíde, só consigo vê-la de noiva.
PEDRO
-
(taciturno)
Foi isso que ela disse, só?
LÚCIA
-
(sombria)
Só. Previa que ia morrer!
PEDRO
-
(com certa ironia)
Isso também nós prevíamos.
LÚCIA
- Você diz "nós"!
PEDRO
-
(afirmativo)
Digo, porque você também previa.
(pausa)
Previa e desejava. Apenas não pensamos no atropelamento. Só.
LÚCIA
-
(com desespero)
Foi você quem botou isso na minha cabeça, que ela devia morrer!
PEDRO
-
(com cinismo cruel)
Então não devia?
LÚCIA
-
(desesperada)
Você é um miserável! Nem ao menos espera que o corpo saia! Com o corpo, ali, a dois passos.
(aponta para a direção do que deve ser a sala contígua)
Você dizendo isso!
PEDRO
-
(insinuando)
Quem é o culpado?
LÚCIA
-
(espantada)
Eu, talvez!
PEDRO
-
(enérgico)
Você, sim!
LÚCIA
-
(espantada)
Tem coragem...
PEDRO
- Tenho.
(com veemência)
Quem foi que disse: “Você só toca em mim, casando!" Quem foi?
LÚCIA
- Fui eu, mas isso não quer dizer nada!
PEDRO
-
(categórico)
Quer dizer tudo! Tudo! Foi você quem me deu a idéia do "crime"! Você!
LÚCIA
-
(com medo)
Você é tão ruim, tão cínico, que me acusa!
PEDRO
-
(com veemência, mas baixo)
Ou você ou ela tinha que desaparecer. Preferi que fosse ela.
LÚCIA
-
(com angústia)
Essa conversa quase diante do caixão!
PEDRO
-
(sempre baixo)
Não estudamos o "crime" em todos os detalhes? Você nunca protestou Você é minha cúmplice.
LÚCIA
-
(alheando-se, espantada)
Mandaram tantas flores!
PEDRO
-
(insistente)
Agora você se acovarda porque o corpo ainda está aqui!
LÚCIA
-
(meio alucinada)
Você se lembra do que ela dizia? Daquela vaidade?
VOZ DE ALAÍDE
-
(microfone)
Eu sou muito mais mulher do que você, sempre fui!
LÚCIA
-
(noutra atitude)
Foi você quem perdeu minha alma!
PEDRO
-
(rápido)
E você a minha!
LÚCIA
-
(sardônica)
Você nunca prestou! Foi sempre isso! Não me olhe, que não adianta!