Read Vestido de Noiva Online

Authors: Nelson Rodrigues

Vestido de Noiva (9 page)

BOOK: Vestido de Noiva
4.67Mb size Format: txt, pdf, ePub
ads

 

PEDRO
-
(com veemência)
Ela não é direita! Não quero essas relações!

 

ALAÍDE
-
(exaltando-se)
Ela não é direita! E você é "direito", é? Você pensa que eu não sei de nada? Pensa mesmo?

 

PEDRO
-
(espantado)
Não sabe o quê?

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Que você e Lúcia...
(ameaçadora)
Sim, você e Lúcia! Andam desejando a minha morte!

 

PEDRO
-
(virando-lhe as costas)
Você está doida.

 

ALAÍDE
- Doida, eu! Você sabe que não! Então eu não vejo?

 

PEDRO
-
(volta a ficar de frente)
O que é que você vê?

 

ALAÍDE
- Vocês cochichando! Eu apareço
(sardônica)
vocês arranjam logo um assunto diferente, muito diferente, ficam tão naturais.

 

PEDRO
-
(irônico)
Você tem imaginação, minha filha!

 

ALAÍDE
- Dia e noite, desejando que eu morra! Eu sei para que é! Para se casarem depois da minha morte!

 

PEDRO
-
(num tom especial)
Então você acha?... Sério?...

 

ALAÍDE
-
(numa excitação progressiva)
Já planejaram tudo! Todo o crime! Assassinato sem deixar vestígios!

 

PEDRO
-
(sardônico)
Autêntico crime perfeito!

 

CLESSI
-
(microfone)
Que dois! Planejando um crime!

 

ALAÍDE
-
(sempre excitada)
Ainda por cima se faz de inocente! Mas eu pego vocês dois - direitinho! Deixa estar!

 

(Lúcia entra, como uma aparição. Vem de luto fechado)

 

LÚCIA
- Ah! Vocês estão aí?

 

ALAÍDE
-
(triunfante)
Pronto! Chegou a cúmplice! Vocês estão tão certos da minha morte que até já botaram luto!

 

LÚCIA
-
(inocente)
O que é que há?

 

PEDRO
-
(apontando para a testa)
É Alaíde que não está regulando bem!

 

ALAÍDE
-
(fremente, para Lúcia)
Venha repetir para meu marido aquilo que você disse, "aquilo"! No dia do meu casamento!

 

LÚCIA
- Sei lá de que é que você está falando?

 

CLESSI -
(microfone)
Irmã assim é melhor não ter!

 

ALAÍDE
- Sabe, sim. Sabe! Aquela insinuação que você fez... Que eu podia morrer!

 

LÚCIA
-
(virando-lhe as costas)
Você está sonhando, minha filha. Disse coisa nenhuma!

 

ALAÍDE
- Covarde! Agora está com medo! Mas disse, disse a mim!

 

PEDRO
- Mas se ela nega, Alaíde!

 

LÚCIA
-
(noutra atitude)
Pois disse! Pronto! Disse! E agora?

 

ALAÍDE
-
(patética)
Então me mate! Por que não me matam? Estamos sozinhos! Depois vocês escondem o meu corpo debaixo de qualquer coisa!
(e, à medida que ela fala, os três se aproximam, juntam as cabeças)
 

 

(As cabeças baixam, seguindo o ritmo das palavras)

 

PEDRO
-
(sinistro)
Agora, não! Tem tempo!

 

(Quando ele acaba, tem-se a impressão plástica de um bouquet de cabeças. Trevas. Luz no plano da realidade: rumor de f erros cirúrgicos)

 

1° MÉDICO
- Pulso?

 

2° MÉDICO
- Incontável... Não reage mais!

1° MÉDICO
- Colapso!

 

3° MÉDICO
- Pronto!

 

(Um dos médicos está cobrindo o rosto de uma mulher. Saem os médicos lentamente, um deles tirando a máscara. Marcha Fúnebre. Trevas. Luz no plano da alucinação. Alaíde e Clessi de costas para a platéia. Alaíde com um bouquet, no qual está dissimulado o microfone. Luz no plano da realidade: botequim e redação)

 

PIMENTA
-
(berrando)
Morreu a fulana.

 

REPÓRTER
-
(berrando e tomando nota)
Qual?

 

PIMENTA
- A atropelada da Glória.

 

REPÓRTER
- Que mais?

 

PIMENTA
- Chegou aqui em estado de choque. Morreu sem recobrar os sentidos; não sofreu nada.

 

REPÓRTER
- Isso é o que você não sabe!

 

PIMENTA
- A irmã chora tanto!

 

REPÓRTER
- Irmã é natural!

 

PIMENTA
- Um chuchu!

 

REPÓRTER
- Quem?

 

PIMENTA
- A irmã.

 

(Trevas. Luz no piano da realidade: Lúcia e Pedro. Lúcia chorando. Coroas. Luz também no plano irreal)

 

ALAÍDE
- Quem terá morrido ali, naquela casa?

 

CLESSI
- Olha! Uma fortuna em flores!

 

ALAÍDE
- Enterro de gente rica é assim.

 

CLESSI
- O meu também teve muita gente, não teve?

 

ALAÍDE
- Pelo menos, o jornal disse.

 

(No plano da realidade)

 

PEDRO
-
(em voz baixa)
Lúcia!

 

LÚCIA
-
(tomando um choque, levantando-se)
Que é? Que horas são?

 

PEDRO
- Três horas.

 

LÚCIA
- Fique longe de mim! Não se aproxime!

 

PEDRO
- Mas que é isso?

 

LÚCIA
-
(com ódio concentrado)
Nunca mais! Nunca mais quero nada com você! Juro!

 

PEDRO
- Você enlouqueceu? O que é que eu fiz?

 

LÚCIA
-
(obstinada)
Jurei diante do corpo de Alaíde!

 

PEDRO
-
(chocado)
Você fez isso?

 

LÚCIA
-
(com decisão)
Fiz. Fiz, sim. Quer que eu vá na sala e jure outra vez?
(mergulha a
cabeça entre as mãos)
Ontem, antes dela sair para morrer, tivemos uma discussão horrível!

 

PEDRO
-
(baixo)
Ela sabia?

 

LÚCIA
-
(patética)
Sabia. Adivinhou o nosso pensamento. E eu disse.

 

PEDRO
- Mas comigo nunca tocou no assunto.

 

LÚCIA
- Discutimos quantas vezes! Ameacei-a de escândalo. Mas ontem, foi horrível, horrível! Sabe o que ela me disse? "Nem que eu morra, deixarei você em paz!"

 

(Lúcia fala com a cabeça entre as mãos. Alaíde responde através do microfone escondido no bouquet. Luz cai em penumbra, durante todo o diálogo evocativo)

 

ALAÍDE
-
(com voz lenta e sem brilho)
Nem que eu morra, deixarei você em paz!

 

LÚCIA
-
(falando surdamente)
Pensa que eu tenho medo de alma do outro mundo?

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Não brinque, Lúcia! Se eu morrer, não sei se existe vida depois da morte, mas se existir, você vai ver!

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Ver o quê, minha filha?

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Você não terá um minuto de paz, se casar com Pedro! Eu não deixo, você verá!

 

LÚCIA
-
(irônica)
Está tão certa assim de morrer?

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Não sei! Você e Pedro são capazes de tudo! Eu posso acordar morta e todo o mundo pensar que foi suicídio.

 

LÚCIA
- Quem sabe?
(noutro tom)
Eu mandei você tirar Pedro de mim?

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Mas que foi que eu fiz, meu Deus?

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Nada!

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Fiz o que muitas fazem. Tirar um namorado! Quer dizer, uma vaidade...
(com veemência)
Você, não! Você e Pedro querem-me matar. Isso, sim, é que é crime, não o que eu fiz!

 

LÚCIA
-
(irritante)
Mas conquistou Pedro tão mal que ele anda atrás de mim o dia todo!

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Sabe para onde eu vou agora?

 

LÚCIA
- Não me interessa!

 

ALAÍDE
- E nem digo, minha filha! Vou ter uma aventura! Pecado. Sabe o que é isso? Vou visitar um lugar e que lugar! Maravilhoso! Já fui lá uma vez!

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Imagino!

 

ALAÍDE -
(com provocação)
Na última vez que fui, tinha duas mulheres dançando. Mulheres com vestidos longos, de cetim amarelo e cor-de-rosa. Uma vitrola. Olha: querendo, pode dizer a Pedro. Não me incomodo. Até é bom!

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Mentirosa!

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Ah! Sou?

 

LÚCIA
-
(afirmativa, elevando a voz)
É! Não foi lá, nunca! Nunca! Tudo isso que você está contando, as duas mulheres, os vestidos de cetim, a vitrola, você leu num livro que está lá em cima! Quer que eu vá buscar? Quer?

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Está bem, Lúcia. Não fui, menti.
(dolorosa)
 

 

LÚCIA
-
(cruel)
Você podia ir e ficar por lá!

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Ouça bem. Eu posso morrer cem vezes, mas você não se casará com Pedro.

 

(Luz volta a ser normal)

 

LÚCIA
-
(impressionadíssima, agora para Pedro)
Agora, quando penso em Alaíde, só consigo vê-la de noiva.

 

PEDRO
-
(taciturno)
Foi isso que ela disse, só?

 

LÚCIA
-
(sombria)
Só. Previa que ia morrer!

 

PEDRO
-
(com certa ironia)
Isso também nós prevíamos.

 

LÚCIA
- Você diz "nós"!

 

PEDRO
-
(afirmativo)
Digo, porque você também previa.
(pausa)
Previa e desejava. Apenas não pensamos no atropelamento. Só.

 

LÚCIA
-
(com desespero)
Foi você quem botou isso na minha cabeça, que ela devia morrer!

 

PEDRO
-
(com cinismo cruel)
Então não devia?

 

LÚCIA
-
(desesperada)
Você é um miserável! Nem ao menos espera que o corpo saia! Com o corpo, ali, a dois passos.
(aponta para a direção do que deve ser a sala contígua)
Você dizendo isso!

 

PEDRO
-
(insinuando)
Quem é o culpado?

 

LÚCIA
-
(espantada)
Eu, talvez!

 

PEDRO
-
(enérgico)
Você, sim!

 

LÚCIA
-
(espantada)
Tem coragem...

 

PEDRO
- Tenho.
(com veemência)
Quem foi que disse: “Você só toca em mim, casando!" Quem foi?

 

LÚCIA
- Fui eu, mas isso não quer dizer nada!

 

PEDRO
-
(categórico)
Quer dizer tudo! Tudo! Foi você quem me deu a idéia do "crime"! Você!

 

LÚCIA
-
(com medo)
Você é tão ruim, tão cínico, que me acusa!

PEDRO
-
(com veemência, mas baixo)
Ou você ou ela tinha que desaparecer. Preferi que fosse ela.

 

LÚCIA
-
(com angústia)
Essa conversa quase diante do caixão!

 

PEDRO
-
(sempre baixo)
Não estudamos o "crime" em todos os detalhes? Você nunca protestou Você é minha cúmplice.

 

LÚCIA
-
(alheando-se, espantada)
Mandaram tantas flores!

 

PEDRO
-
(insistente)
Agora você se acovarda porque o corpo ainda está aqui!

 

LÚCIA
-
(meio alucinada)
Você se lembra do que ela dizia? Daquela vaidade?

 

VOZ DE ALAÍDE
-
(microfone)
Eu sou muito mais mulher do que você, sempre fui!

 

LÚCIA
-
(noutra atitude)
Foi você quem perdeu minha alma!

 

PEDRO
-
(rápido)
E você a minha!

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Você nunca prestou! Foi sempre isso! Não me olhe, que não adianta!

BOOK: Vestido de Noiva
4.67Mb size Format: txt, pdf, ePub
ads

Other books

Fame by Meghan Quinn
Dead Reckoning by Mike Blakely
Soldier's Valentine by Lane, Lizzie
Kage by John Donohue
Sword of Jashan (Book 2) by Anne Marie Lutz
The Murderer is a Fox by Ellery Queen
All of the Voices by Bailey Bradford
Frightful Fairy Tales by Darcy, Dame