Authors: Eça de Queirós
Houve uma hesitação, Jorge disse:
— O cozido talvez.
E o Conselheiro com afeto:
— O nosso Jorge opina pelo cozido.
— Também estou pela sua! - exclamou o Alves Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em reconhecimento: - O cozidinho!
E o Conselheiro que julgava do seu dever dar à conversação nobreza e interesse, disse, limpando devagar o bigode da gordura da sopa:
— Dizem-me que é muito liberal a Constituição da Itália!
Liberal! Segundo Julião, se a Itália fosse liberal devia ter há muito expulso a coronhadas o Papa, o Sacro Colégio, e a Sociedade de Jesus!
O Conselheiro pediu, com bondade, a benevolência do amigo Zuzarte para o "chefe da Igreja".
— Não - explicou - que eu seja um secretário do Syllabus! Não que eu queira ver os jesuítas entronizados no seio da família! Mas - e a sua voz tornou-se profunda - o respeitável prisioneiro do Vaticano é o vigário de Cristo! Meu Sebastião, sirva o arroz!
Não havia que estranhar aquelas opiniões católicas do Conselheiro, ia observando Julião, porque tinha duas imagens de santos pendentes à cabeceira da cama...
A calva de Acácio fez-se rubra. O Saavedra do Século exclamou com a boca cheia:
— Não o sabia carola, Conselheiro!
Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e acudiu:
— Eu peço ao meu Saavedra que não tire desse fato ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião é um freio...
— Para os que o precisam... - interrompeu Julião.
Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas do paio:
— Não o precisamos nós decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, Sr. Zuzarte. Senão veríamos aumentar a estatística dos crimes.
E o Saavedra do Século, erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito séria:
— Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. - Repetiu a máxima, modificando-a: - A religião é um bridão! - Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava.
O Conselheiro continuava, explicando:
— Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas litografias ou gravuras, alusivas ao mistério da Paixão, têm o seu lugar num quarto de cama, e inspiram de certo modo sentimentos cristãos. Não é verdade, meu Jorge?
Mas o Saavedra interrompeu ruidosamente, com a face acesa numa jovialidade libertina:
— Eu, num quarto de dormir, as únicas pinturas que admito são uma bela ninfa nua, ou uma bacante desenfreada!
— Isso, isso! - bradou o Alves Coutinho. A boca dilatava-lhe numa admiração sensual. - Este Saavedra! Este Saavedra! E baixo para Sebastião: - Tem um talento! Tem um talento!
O Conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o guardanapo para o estômago:
— Espero que não sejam esses os painéis imorais que se vêem no seu gabinete de estudo...
Julião emendou:
— No meu cubículo. Ah! Não, Conselheiro! Tenho apenas duas litografias - uma é um homem sem pele para representar o sistema arterial, o outro é o mesmo indivíduo igualmente sem pele para se ver o sistema nervoso.
O Conselheiro teve com a sua mão branca um vago gesto enojado, e exprimiu a opinião - que na Medicina, aliás uma grande ciência!, havia coisas bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos teatros anatômicos, os estudantes de idéias mais avançadas levavam o seu desprezo pela moral até atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de membros humanos, pés, coxas, narizes...
— Mas é como quem mexe em terra, Conselheiro! - disse Julião, enchendo o copo. - É matéria inerte!
— E a alma, Sr. Zuzarte? - exclamou o Conselheiro. Fez um gesto de vaga reticência; e julgando tê-lo aniquilado com aquela palavra suprema, abriu para Sebastião um sorriso cortês e protetor: - E que diz o nosso bondoso Sebastião?
— Estou a ouvir, Sr. Conselheiro.
— Não dê ouvidos a estas doutrinas! - Com o garfo mostrava a figura biliosa de Julião. - Mantenha a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso Jorge (o que é de lamentar num homem estabelecido e empregado do Estado) também vai um pouco para estas exagerações materialistas!
Jorge riu; afirmou que sim, que tinha essa honra...
— Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de Matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos?
O Conselheiro acudiu:
— Não, instrumentos não! - E como apelando para todos: - Não creio que tivesse falado em instrumentos. Os instrumentos são uma exageração. São, podemos dizê-lo, táticas do partido reacionário...
Ia fulminar a doutrina ultramontana - mas a Sra. Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada. Compenetrou-se logo do seu dever, afiou o trinchador com solenidade, foi cortando fatias finas, com a testa muito franzida como na aplicação de uma função grave. Então Julião, pousando os cotovelos sobre a mesa e escabichando os dentes com a unha, perguntou:
— E o ministério, cai ou não cai?
Sebastião ouvira dizer no vapor de Almada, de tarde, que a situação estava firme.
Mas o Saavedra esvaziou o copo, limpou os beiços e declarou que em duas semanas estavam em terra. Nem aquele escândalo podia continuar! Não tinham a mais pequena idéia de governo. Nem a mais leve! Assim, por exemplo, ele... - E meteu as mãos nos bolsos, firmando-se nas costas da cadeira. - Ele tinha-os apoiado, não é verdade? E com lealdade. Porque era leal! Sempre o fora em política! Pois bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor de Aljustrel, tendo-lho prometido! E nem lhe tinham dado uma satisfação. Assim não era possível fazer política! Era uma coleção de idiotas!
Jorge alegrava-se que viessem outros; talvez lhe dessem de novo a sua comissão no ministério; e ele o que queria era estar quieto ao seu cantinho...
O Alves Coutinho calava-se, com prudência, engolindo buchas de pão.
— Ou que caiam ou que fiquem - disse Julião -, que venham estes ou que venham aqueles... Obrigado, Conselheiro - e recebeu o seu prato de vitela - ... é-me inteiramente indiferente. É tudo a mesma podridão! - O país inspirava-lhe nojo; de cima a baixo era uma choldra; e esperava breve que, pela lógica das coisas, uma revolução varresse a porcaria...
— Uma revolução! - fez o Alves Coutinho assustado, com olhares inquietos para os lados, coçando nervosamente o queixo.
O Conselheiro sentara-se e disse, então:
— Eu não quero entrar em discussões políticas, só servem para dividir as famílias mais unidas, mas só lhe lembrarei, Sr. Zuzarte, uma coisa, os excessos da Comuna...
Julião recostou-se, e com uma voz muito tranqüila:
— Mas onde está o mal, Sr. Conselheiro, se fuzilarmos alguns banqueiros, alguns padres, alguns proprietários obesos e alguns marqueses caquéticos! Era uma limpezazinha!... - E fazia o gesto de afiar a faca.
O Conselheiro sorriu, cortesmente; tomava como um gracejo aquela saída sanguinária.
O Saavedra, porém, interpôs-se, com autoridade:
— Eu no fundo sou republicano...
— E eu - disse Jorge.
— E eu - fez o Alves Coutinho, já inquieto. - Contem-me a mim também!
— Mas - continuou o Saavedra - sou-o em princípio. Porque o princípio é belo, o princípio é ideal! Mas a prática? Sim, a prática? - E voltava para todos os lados a sua face balofa.
— Sim, na prática! - exclamava o Alves Coutinho, em eco admirativo.
— A prática é impossível! - declarou o Saavedra. E encheu a boca de vitela.
O Conselheiro então resumiu:
— A verdade é esta: o pais está sinceramente abraçado à família real... Não acha, meu bom Sebastião? - Dirigia-se a ele como proprietário e possuidor de inscrições.
Sebastião, interpelado, corou, declarou que não entendia nada de política; havia todavia fatos que o afligiam; parecia-lhe que os operários eram malpagos; a miséria crescia; os cigarreiros, por exemplo, tinham apenas de nove a onze vinténs por dia, e, com família, era triste...
— É uma infâmia! - disse Julião encolhendo os ombros.
— E há poucas escolas... - observou timidamente Sebastião.
— É uma torpeza! - insistiu Julião.
O Saavedra calava-se, ocupado com o alimento; tinha desabotoado a fivela do colete; espalhava-se-lhe no rosto gordo uma cor de enfartação, e sorria vagamente, inchado.
— E os idiotas de São Bento?... - exclamou Julião.
Mas o Conselheiro interrompeu-o:
— Meus bons amigos, falemos de outra coisa. É mais digno de portugueses e de súditos fiéis.
E voltando-se logo para Jorge, quis saber como ficara a interessante D. Luísa.
Estava um pouco adoentada havia dias - disse Jorge. - Mas não era nada, mudança de estação, um bocadito de anemia...
O Saavedra, pousando o copo, e cumprimentando:
— Tive o prazer de a ver passar este verão quase todas as manhãs por minha casa - disse. - Ia para os lados de Arroios. Às vezes de trem, às vezes a pé...
Jorge pareceu um pouco surpreendido; mas o Conselheiro ia dizendo quanto lhe pesava não ter o prazer de a ver partilhar daquele modesto repasto; como celibatário porém... não tendo uma esposa para fazer as honras...
— E é o que eu admiro, Conselheiro - observou Julião -, é que tendo uma casa tão confortável, não se tenha casado, não se tenha dado o conchego de uma senhora...
Todos apoiaram. Era verdade! O Conselheiro devia-se ter casado.
— São graves, perante Deus e perante a sociedade, as responsabilidades de um chefe de família - considerou ele.
Mas enfim - disseram, é o estado mais natural. E depois, que diabo, às vezes havia de se sentir só! E numa doença! Sem contar a alegria que dão os filhos!...
O Conselheiro objetou: "os anos, as neves da fronte..."
Também ninguém lhe dizia que fosse casar com uma rapariga de quinze anos! Não, era arriscado. Mas com uma pessoa de certa idade que tivesse atrativos, cuidados de interior... Era mesmo moral.
— Porque enfim, Conselheiro, a natureza é a natureza... - disse Julião com malícia.
— Há muito, meu amigo, que se apagou dentro em mim o fogo das paixões.
Ora qual! Era um fogo que nunca se extinguia! Que diabo! Era impossível que o Conselheiro, apesar dos seus cinqüenta e cinco, fosse indiferente a uns belos olhos pretos, a umas formazinhas redondas!...
O Conselheiro corava. E o Saavedra declarou, com um circunlóquio pudico - que nenhuma idade se eximia à influência de Vênus. Toda a questão é nos gostos - disse -, aos quinze anos gosta-se de uma matrona cheia, aos cinqüenta de um frutozinho tenro... Pois não é verdade, amigo Alves?
O Alves arregalou os olhos concupiscentes, e fez estalar a língua.
E o Saavedra continuou:
— Eu, a minha primeira paixão foi uma vizinha; mulher de um capitão de navios, mãe de seis filhos, e que não cabia por aquela porta. Pois senhores, fiz-lhe versos, e a excelente criatura ensinou-me um par de coisas agradáveis... Deve-se começar cedo, não é verdade? - E voltou-se para Sebastião.
Quiseram então saber as opiniões de Sebastião - que se fez escarlate.
Por fim, muito solicitado, disse com timidez:
— Eu acho que se deve casar com uma rapariga de bem, e estimá-la toda a vida...
Aquelas palavras simples produziram um curto silêncio. Mas o Saavedra, reclinando-se, classificou uma tal opinião de burguesa; o casamento era um fardo; não havia nada como a variedade...
E Julião expôs dogmaticamente:
— O casamento é uma fórmula administrativa, que há de um dia acabar...
— De resto, segundo ele, a fêmea era um ente subalterno; o homem deveria aproximar-se dela em certas épocas do ano (como fazem os animais, que compreendem estas coisas melhor que nós), fecundá-la, e afastar-se com tédio.
Aquela opinião escandalizou a todos, sobretudo o Conselheiro, que a achou "de um materialismo repugnante".
— Essas fêmeas para quem é tão severo, Sr. Zuzarte - exclamava ele - essas fêmeas são nossas mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do chefe de Estado, as damas ilustres da nobreza...
— São o melhor bocadinho deste vale de lágrimas - interrompeu com fatuidade o Saavedra, dando palmadinhas sobre o estômago. Dissertou então sobre as mulheres. O que sobretudo lhes exigia era um bonito pé; não havia nada como um pezinho catita! E a todas preferia a mulher espanhola!
O Alves votava pelas francesas; citava algumas do café-concerto, criaturas de fazer perder a cabeça!... - E injetavam-se-lhe os olhos.
O Saavedra disse com um trejeito hostil:
— Sim, para um bocado de cancã... Para o cancã não há como as francesas... Mas muito chupistas!
O Conselheiro afirmou ajeitando as lunetas:
— Viajantes instruídos têm-me afiançado que as inglesas são notáveis mães de família...
— Mas frias como esta madeira - disse o Saavedra batendo na mesa. - Mulheres de gelo! - E reclamava espanholas! Queria fogo! Queria salero! Tinha o olhar brilhante do vinho; a comida acendia-lhe o sentimento.
— Uma bela gaditana, hem, amigo Alves?
Mas em presença dos doces que a Sra. Filomena dispôs sobre a mesa, o Alves Coutinho esquecera as mulheres, e, voltado para Sebastião, discutia gulodices. Indicava as especialidades: para os folhados, o Cocó! Para as natas, o Baltresqui! Para as gelatinas, o Largo de São Domingos! Dava receitas; contava proezas de lambarice, revirando os olhos:
— Porque - dizia - o docinho e a mulherzinha é o que me toca cá por dentro a alma!
Era todo o tempo que não dedicava ao serviço do Estado, dividia-o, com solicitude, entre as confeitarias e os lupanares.
Saavedra e Julião discutiam a imprensa. O redator do Século gabava a profissão de jornalista - quando a gente, já se sabe, tem alguma coisa de seu; mais tarde ou mais cedo apanhava-se um nicho, não é verdade? Depois as entradas nos teatros, a influência nas cantoras. Sempre se é um bocado temido... E o Conselheiro, cortando os ovos queimados, saboreando as alegrias da convivência, dizia a Jorge:
— Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita?... Parecem excelentes os ovos.