Authors: Eça de Queirós
Saíram brancas - e então desesperou de tudo; abandonou-se a uma inação em que sentia quase uma voluptuosidade, passando dias sem se importar, quase sem se vestir, desejando morrer, devorando nos jornais todos os casos de suicídios, de falências, de desgraças - consolando-se com a idéia de que nem só ela sofria, e que a vida em redor, na cidade, fervilhava de aflições.
Às vezes, de repente, vinha-lhe uma pontada de medo. Decidia-se então de novo a abrir-se com Sebastião; depois pensava que seria melhor escrever-lhe; mas não achava as palavras, não conseguia arranjar uma história racional; vinha-lhe uma cobardia; e recaia na sua inércia, pensando: "amanhã, amanhã..."
Quando, só, no seu quarto, se chegava por acaso à janela, punha-se a imaginar o que diria a vizinhança, quando se soubesse! Condená-la-iam? Lamentá-la-iam? Diriam: - "Que desavergonhada"? Diriam: - "Coitadinha"? E por dentro dê vidraça seguia, com um olhar quase aterrado, as passeatas do Paula pela rua, o embasbacamento obeso da carvoeira, as Azevedos por trás das bambinelas de cassa! Como eles todos gritariam: - "Bem dizíamos nós! Bem dizíamos nós!" Que desgraça! - Ou então via de repente Jorge, terrível, fora de si, com as cartas na mão; e encolhia-se como se lá estivesse sob a cólera dos seus punhos fechados.
Mas o que a torturava mais era a tranqüilidade de Juliana - espanejando, cantarolando, servindo-a ao jantar de avental branco. Que tencionava ela? Que preparava ela? As vezes vinha-lhe uma onda de raiva; se fosse forte ou corajosa, decerto atirar-se-lhe-ia ao pescoço, para a esganar, arrancar-lhe a carta! Mas pobre dela; era "uma mosquinha"!
Justamente, numa dessas manhãs, Juliana entrou no quarto - com o vestido preto de seda no braço. Estendeu-o na causeuse, e mostrou a Luísa, na saia, ao pé do último folho, um rasgão largo que parecia feito com um prego; vinha saber se a senhora queria que o mandasse à costureira.
Luísa lembrava-se bem; rasgara-o uma manhã no Paraíso a brincar com Basílio!
— Isto é fácil de arranjar - dizia Juliana, passando de leve a mão espalmada sobre a seda, com lentidão de uma carícia.
Luísa examinava-o, hesitante:
— Ele também já não está novo... Olhe, guarde-o pra você!
Juliana estremeceu, fez-se vermelha:
— Oh, minha senhora! - exclamou. - Muito agradecida! É um rico presente. Muito agradecida, minha senhora! Realmente... - E a voz perturbava-se-lhe.
Tomou-o nos braços, com cuidado, correu logo à cozinha. E Luísa, que a seguira pé ante pé, ouviu-a dizer toda excitada:
— É um rico presente, é o que há de melhor. E novo! Uma rica seda! - Fazia arrastar a cauda pelo chão, com um frufru. Sempre o invejara; e tinha-o agora, era o seu vestido de seda! - É de muito boa senhora, Sra. Joana, é de um anjo!
Luísa voltou ao quarto, toda alvoroçada; era como uma pessoa perdida de noite, num descampado - que de repente, ao longe, vê reluzir um clarão de vidraça! Estava salva! Era presenteá-la, era fartá-la! Começou logo a pensar no que lhe podia dar mais, pouco a pouco: o vestido roxo, roupas brancas, o roupão velho, uma pulseira!
Daí a dois dias - era um domingo - recebeu um telegrama de Jorge:
"Parto amanhã do Carregado. Chego pelo comboio do Porto às seis." Que sobressalto! Voltava, enfim!
Era nova, era amorosa - e no primeiro momento todos os sustos, as inquietações desapareceram sob uma sensação de amor e de desejo, que a inundou. Viria de madrugada, encontrá-la-ia deitada - e já pensava na delícia do seu primeiro beijo!...
Foi-se ver ao espelho: estava um pouco magra, talvez com a fisionomia um pouco fatigada... E a imagem de Jorge aparecia-lhe então muito nitidamente, mais queimada do sol, com os seus olhos ternos, o cabelo tão anelado! Que estranha coisa! Nunca lhe apetecera tanto vê-lo. Foi logo ocupar-se dele; o escritório estaria bem arranjado? Quereria um banho morno; seria necessário aquecer a água na tina grande!... E ia e vinha, cantarolando, com um brilho exaltado nos olhos.
Mas a voz de Juliana, de repente no corredor, fê-la estremecer. Que faria ela, a mulher? Ao menos que a deixasse naqueles primeiros dias gozar a volta de Jorge, tranqüilamente!... Veio-lhe uma audácia, chamou-a.
Juliana entrou, com o vestido de seda novo, movendo-se cuidadosamente:
— Quer alguma coisa, minha senhora?
— O Sr. Jorge volta amanhã... - disse Luísa.
E suspendeu-se; o coração batia-lhe fortemente.
— Ah! - fez Juliana. - Bem, minha senhora.
E ia sair
— Juliana! - fez Luísa, com a voz alterada.
A outra voltou-se, surpreendida.
E Luísa batendo com as mãos, num movimento suplicante:
— Mas você ao menos nestes primeiros dias... Eu hei de arranjar, esteja cena!...
Juliana acudiu logo:
— Oh, minha senhora! Eu não quero dar desgostos a ninguém. O que eu quero é um bocadinho de pão para a velhice. De minha boca não há de vir mal a ninguém. O que peço à senhora é que se for da sua vontade e me quiser ir ajudando...
— Lá isso, sim... O que você quiser..
— Pois pode, estar certa que esta boca... - E fechou os lábios com os dedos.
Que alegria para Luísa! Tinha uns dias, umas semanas, enfim, sem tormentos, com o seu Jorge! Abandonou-se então toda à deliciosa impaciência de o ver. Era singular - mas parecia-lhe que o amava mais!... - E depois pensaria, veria, daria outros presentes a Juliana, poderia pouco a pouco preparar Sebastião... Quase se sentia feliz.
De tarde Juliana veio dizer-lhe, muito risonha:
— A Sra. Joana saiu, que era hoje o seu dia, mas eu tinha tanta precisão de sair, também! Se a senhora lhe não custasse ficar só...
— Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, dai a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor, fechar com ruído a cancela.
Então de repente uma idéia deslumbrou-a, como a fulguração de um relâmpago: - ir ao quarto dela, rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janela dobrar a esquina. Subiu logo ao sótão, devagar, escutando, com o coração aos saltos. A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada que a enjoou; pelo postigo entrava uma luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada à parede, ficava a arca! Mas estava fechada! Decerto! Desceu correndo, veio buscar o seu molho de chaves... Sentiu uma vergonha - mas se achasse as cartas! Aquela esperança deu-lhe todos os atrevimentos, como um vinho alcoólico. Começou a experimentar as chaves; a mão tremia-lhe; de repente a lingüeta, com um estalinho seco,
cedeu! Ergueu a tampa, estavam ali talvez! E então, com cautela, muito femininamente, pôs-se a tirar as coisas uma por uma, pondo-as em cima do colchão: o vestido de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado em papel de seda; velhas fitas roxas e azuis, passadas a ferro; uma pregadeira de cetim cor-de-rosa, com um coração bordado a matiz; dois frasquinhos de cheiro, intactos, tendo colados ao vidro raminhos de rosas de papel recortado; três pares de botinas embrulhadas em jornais; a roupa branca, de onde se exalava um cheiro à madeira e de folhas de maçã camoesa. Entre duas camisas estava um maço
de cartas atadas com um nastro... Nenhuma era dela! Nem de Basílio! Eram de letra de aldeia, ininteligível e amarelada! Que raiva! E ficou a olhar para a arca vazia, de pé; com os braços tristemente caídos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo. Estremeceu, aterrada. um gato que, com passos leves, vadiava pelo telhado. - Tornou a repor tudo as mesmas dobras, fechou a arca, ia a sair - mas lembrou-se de procurar na gaveta da mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança; desmanchou a roupa da cama, remexeu a palha amolentada do enxergão, sacudiu as velhas botinas, esgaravatou os cantos... Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr. Que surpresa! Era D. Felicidade.
— És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor. Saíra na véspera da Encarnação; o pé às vezes ainda lhe fazia mal; mas graças a Deus estava escapa! E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
Entraram no quarto. Escurecia. Luísa acendeu as velas.
— E como me achas tu, hem? - perguntou D. Felicidade, pondo-se diante dela.
— Um bocadito mais pálida.
Ai! Tinha sofrido muito! Ergueu a saia, mostrou o pé calçado num sapato largo; obrigou Luísa a apalpá-lo... Que uma consolação lhe restava: é que toda a Lisboa a fora ver! Graças a Deus! Toda a Lisboa; o que há de melhor em Lisboa!
— E tu esta semana - acrescentou - nem apareceste! Pois olha que te cortaram na pele...
— Não pude, filha. O Jorge chega amanhã, sabias?
— Ah, sua brejeira! Viva! Está esse coraçãozinho aos pulos! - E disse-lhe um segredinho.
Riram muito.
— Pois eu - continuou D. Felicidade sentando-se - arranjei-te hoje a partida. Encontrei esta manhã o Conselheiro, que me disse que vinha. Encontrei-o aos Mártires! Olha que foi sorte, logo no primeiro dia que saí! E um bocado adiante dou com Julião; diz que também vinha!... - E com a voz desfalecida:
— Sabes? Tomava uma colherinha de doce...
Foi Luísa que abriu a porta ao Conselheiro e a Julião, que se tinham encontrado na escada, dizendo-lhes a rir:
— Hoje sou eu o guarda-portão!
D. Felicidade, na sala, para disfarçar a perturbação que lhe deu o espetáculo amado da pessoa de Acácio, começou, falando muito, a censurá-la por deixar assim sair no mesmo dia as duas criadas...
— E se te achares incomodada, filha; se te der alguma coisa?
Luísa riu. Não era afeta a fanicos...
Todavia achavam-na abatida. E o Conselheiro, com interesse:
— Tem continuado a sofrer dos dentes, D. Luísa?
Dos dentes? Era a primeira vez que tal ouvia! - exclamou D. Felicidade. Julião declarou que raras vezes vira uma dentição tão perfeita.
O Conselheiro apressou-se a citar: - Em lábios de coral, pérolas finas..."
E acrescentou:
— É verdade, mas a última vez que tive a honra de estar com D. Luísa, viu-se tão repentinamente aflita com um dente, que teve de ir a correr chumbá-lo ao Vitry.
Luísa fez-se muito vermelha. Felizmente a campainha tocou. Devia ser a Joana; ia abrir...
— É verdade - continuou o Conselheiro - tínhamos feito um delicioso passeio, quando de repente D. Luísa empalidece, e parece que a dor era tão urgente que se precipitou para a escada do dentista, como louca...
A propósito de dores, D. Felicidade, que estava ansiosa por interessar, comover o Conselheiro, começou a história do seu pé: disse a queda, o milagre de não ter morrido, as visitas assíduas de condessas e viscondessas, o susto em toda a Encarnação, os cuidados do bom Dr. Caminha...
— Ai! Sofri muito! - suspirou, com os olhos no Conselheiro, para provocar uma palavra simpática.
Acácio, então, disse com autoridade:
— É sempre um erro, ao descer uma escada íngreme, não procurar o apoio do corrimão.
— Mas podia ter morrido! - exclamou ela. E voltando-se para Julião: - Pois não é verdade?
— Neste mundo morre-se por qualquer coisa - disse ele enterrado numa poltrona, fumando voluptuosamente. Ele mesmo estivera naquela tarde para ser atropelado por um trem; destinara o domingo para se dar um feriado, e fizera um grande passeio pela circunvalação... - Há mais de um mês vivo no meu cubículo, como um frade beneditino na livraria do seu convento! - acrescentou, rindo, quebrando complacentemente a cinza do cigarro sobre o tapete.
O Conselheiro quis saber então o assunto da tese: decerto muito momentoso!... E apenas Julião lhe disse: Sobre Fisiologia, Sr. Conselheiro", Acácio observou logo, com uma voz profunda:
— Ah! Fisiologia! Deve ser então de grande magnitude! E presta-se mais ao estilo ameno.
Queixou-se, também, de vergar ao peso dos seus trabalhos literários...
— Esperemos todavia, Sr. Zuzarte, que não sejam infrutíferas as nossas vigílias!
— As suas, Sr. Conselheiro, as suas! - E com interesse: - Quando nos dá o seu novo trabalho? Há sofreguidão em o ver!
— Há alguma sofreguidão - concordou o Conselheiro com seriedade. Há dias me dizia o senhor ministro da Justiça (esse robustíssimo talento), há dias me dizia, me fazia a honra de me dizer: Dê-nos depressa o seu livro, Acácio, estamos precisados de luz, de muita luz!" Foi assim que ele disse. Eu inclinei-me, naturalmente, e respondi: "senhor ministro, não serei eu que a negue ao meu pais, quando o meu país a necessitar!"
— Muito bem, muito bem, Conselheiro!
— E - acrescentou - dir-lhes-ei aqui em família, que o nosso ministro do reino me deixou entrever num futuro não remoto, a comenda de São Tiago!
— Já lha deviam ter dado, Conselheiro! - exclamou Julião, divertindo-se.
— Mas neste desgraçado país... Já a devia ter ao peito, Conselheiro!
— Há que tempos! - exclamou com força D. Felicidade.
— Obrigado, obrigado! - balbuciou o Conselheiro, rubro. E na expansão do seu júbilo ofereceu com uma familiaridade agradecida, a sua caixa de rapé a Julião.
— Tomarei para espirrar - disse ele.
Sentia-se naquela tarde numa disposição benévola; o trabalho e as altas esperanças que ele lhe dava tinham decerto dissipado o seu azedume; parecia até ter esquecido a sua humilhação, quando encontrara ali, naquela sala, o primo Basílio, porque apenas Luísa entrou, perguntou-lhe por ele.
— Partiu para Paris, não sabiam? Há que tempos!
D. Felicidade e o Conselheiro fizeram logo o elogio de Basílio. Tinha ido deixar bilhetes de visita a ambos - o que encantara D. Felicidade e ensoberbecera o Conselheiro. Era um verdadeiro fidalgo! - exclamava ela. E Acácio afirmou com autoridade:
— É uma voz de barítono, digna de São Carlos.
— E muito elegante! - disse D. Felicidade.
— Um gentleman! - resumiu o Conselheiro.
Julião, calado, bamboleava a perna. Agora, àqueles elogios, o seu despeito renascia; lembrava a secura cortante de Luísa, naquela manhã, as poses do outro. Não resistiu a dizer:
— Um pouco sobrecarregado nas jóias e nos bordados das meias. De resto é moda no Brasil, creio...
Luísa corou; teve-lhe ódio. E, vagamente, veio-lhe uma saudade de Basílio.
D. Felicidade então, perguntou por Sebastião: não o via havia um século; e lamentava, porque era uma pessoa que lhe dava saúde, só vê-la.