Authors: Eça de Queirós
Para passar a sua manhã, comprou uma quarta de rebuçados, e foi-se sentar no Passeio, com a sombrinha aberta, deliciando-se, ruminando já a sua vida rica, julgando-se já senhora; mesmo fez olho a um proprietário pacifico e rubicundo que se afastou escandalizado!
Aquela hora Luísa acordava. E sentando-se bruscamente na cama: - "É hoje!" - foi o seu primeiro pensamento. Um susto, uma tristeza horrível contraíram-lhe o coração. Começou depois a vestir-se, muito nervosa com a idéia de ver Juliana! Estava mesmo imaginando fechar-se, não almoçar, sair pé ante pé às onze horas, ir procurar Basílio ao hotel, quando a voz de Joana disse à porta do quarto:
— A senhora faz favor?
Começou logo a contar, muito espantada, que a Sra. Juliana tinha saído de manhã; ainda não voltara; estava tudo por arrumar...
— Bem, arranje-me o almoço, eu já vou... - Que alívio para ela!
Calculou logo que Juliana deixara a casa. Para quê? Para lhe armar alguma, decerto! O melhor era sair imediatamente... Podia esperar Basílio no Paraíso.
Foi à sala de jantar, bebeu um gole de chá, de pé, à pressa.
— A Sra. Juliana ter-lhe-á dado alguma coisa? - veio dizer Joana assombrada.
Luísa encolheu os ombros; respondeu vagamente:
— Depois se saberá...
Era hora e meia; foi pôr o chapéu. O coração batia-lhe alto, e apesar do terror de ver entrar Juliana, não se decidia a sair; sentou-se mesmo, com o saco de marroquim nos joelhos. "Vamos!", pensou enfim. - Ergueu-se; mas parecia que alguma coisa de sutil e de forte a prendia, a enleava... Entrou na alcova devagar; o seu roupão estava caído aos pés da cama, as suas chinelinhas sobre o tapete felpudo... - Que desgraça! - disse alto. Veio ao toucador, mexeu nos pentes, abriu as gavetas; de repente entrou na sala, foi ao álbum, tirou a fotografia de Jorge, meteu-a toda trêmula no saco de marroquim, olhou ainda em roda como desvairada, saiu, atirou com a porta, desceu a escada correndo.
À Patriarcal passava um cupê de praça. Tomou-o, mandou-o a ir ao Hotel Central.
O Sr. Brito saíra logo de manhã cedo, disse o porteiro muito azafamado. Decerto algum paquete chegara, porque entravam bagagens, fortes malas cobertas de oleado, caixas de madeira debruadas de ferro; passageiros com ar espantado da chegada, ainda entontecidos do balouço do mar, falavam, chamavam. Aquele movimento animou-a; veio-lhe um desejo de viagens, do ruído noturno das gares à claridade do gás, da agitação alegre das partidas nas manhãs frescas, sobre o tombadilho dos paquetes!
Deu ao cocheiro a adresse do Paraíso. E à maneira que o trem trotava parecia-lhe que toda a sua vida passada, Juliana, a casa, se esbatiam, se dissipavam num horizonte abandonado. A porta de um livreiro julgou entrever Julião; debruçou-se pela portinhola, precipitadamente; não o avistou, teve pena; ia-se sem ver um amigo da casa! Todos agora, Julião, Ernestinho, o Conselheiro, D. Felicidade lhe pareciam adoráveis, com qualidades nobres, que nunca percebera, que repentinamente tomavam um grande encanto. E o pobre Sebastião, tão bom! Nunca mais lhe ouviria tocar a sua malaguenha!
Ao fim da Rua do Ouro o cupê parou num embaraço de carroças, e Luísa viu no passeio ao lado o Castro, o Castro dos óculos, o banqueiro, o que Leopoldina lhe dizia que tinha uma paixão por ela; um rapazito roto ofereceu-lhe cautelas; e o Castro nédio, com os dois polegares nas algibeiras do colete branco, dizia graças ao rapaz, com um desdém ricaço, dardejando olhadelas sobre Luísa, através dos seus óculos de ouro. Ela, pelo canto do olho, observava-o; tinha uma paixão por ela, aquele homem, que horror! Achava-o medonho, com o seu ventre pançudo, a perninha curta. A lembrança de Basílio atravessou-a, a sua linda figura!... - e bateu nos vidros impaciente, com pressa de o ver.
O trem partiu enfim. O Rossio reluzia ao sol; do americano, parado à esquina, gente descia apressada, de calças brancas, vestidos leves, vinda de Belém, de Pedrouços; pregões cantavam. - Todos ali ficavam nas suas famílias, nas suas felicidades; só ela partia!
Na Rua Ocidental, viu vir a D. Camila - uma senhora casada com um velho, ilustre pelos seus amantes. Parecia grávida; e adiantava-se devagar, com a face branca satisfeita, uma lassitude do corpo arredondado, passeando um marmanjozinho de jaqueta cor de pinhão, uma pequerrucha de sainhas tufadas, e adiante uma ama, vestida de lavradeira, empurrava um carrinho de mão onde um bebê se babava. E a Camila, feliz, vinha tranqüilamente pela rua expondo as suas fecundidades adúlteras! Era muito festejada; ninguém dizia mal dela; era rica, dava soirées... - "O que é o mundo!" - pensava Luísa.
O trem parou à porta do Paraíso, era meio-dia. A portinha em cima estava fechada: e a patroa apareceu logo, ciciando que sentia muitíssimo, mas só o senhor é que tinha a chavezinha; se a senhora quisesse descansar... Nesse momento outra carruagem chegou, e Basílio apareceu galgando os degraus.
— Até que enfim! - exclamou abrindo a porta. - Por que não vieste ontem?...
— Ah! Se tu soubesses...
E, agarrando-lhe os braços, cravando os olhos nele:
— Basílio, sabes, estou perdida!
— Que há?
Luísa atirara o saco de marroquim para o canapé, e, de um fôlego, contou-lhe a história da carta apanhada nos papéis; as dele roubadas, a cena no quarto...
— O que me resta é fugir. Aqui estou. Leva-me. Tu disseste que podias, tem-lo dito muitas vezes. Estou pronta. Trouxe aquele saco, com o necessário, lenço, luvas... hem?
Basílio com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves, seguia atônito os seus gestos, as suas palavras.
— Isso só a ti! - exclamou. - Que doida! Que mulher! E muito excitado: - Isto é lá questão de fugir! Que estás tu a falar em fugir? É uma questão de dinheiro. O que ela quer é dinheiro. É ver quanto quer, e pagar-se-lhe!
— Não, não! - fez Luísa. - Não posso ficar! - Tinha uma aflição na voz. A mulher venderia a carta, mas conservava o segredo; a todo o tempo podia falar, Jorge saber; estava perdida; não tinha coragem de voltar para casa! - Não sinto
um momento de descanso, enquanto estiver em Lisboa. Partimos hoje, sim? Se não podes, amanhã. Eu vou para algum hotel, onde ninguém saiba; escondo-me esta noite. Mas, amanhã vamos. Se ele sabe, mata-me, Basílio! Sim, dize que sim!
— Agarrara-se a ele; procurava avidamente com os seus olhos o consentimento dos dele.
Basílio desprendeu-se brandamente:
— Estás doida, Luísa; tu não estás em ti! Pode lá pensar-se em fugir? Era um escândalo atroz; éramos apanhados decerto, com a policia, com os telégrafos! t impossível! Fugir é bom nos romances! E depois, minha filha, não é um caso para isso! É uma simples questão de dinheiro...
Luísa fazia-se branca, ouvindo-o.
— E além disso - continuou Basílio, muito agitado, pelo quarto - eu não estou preparado, nem tu! Não se foge assim. Ficas desacreditada para toda a vida, sem remédio, Luísa. Uma mulher que foge, deixa de ser a senhora D. Fulana; é a fúlana, a que fugiu, a desavergonhada, uma concubina! Eu tenho decerto de ir ao Brasil; onde hás de tu ficar? Queres ir também, um mês num beliche, arriscar-te à febre amarela? E se teu marido nos persegue, se formos detidos na fronteira? Achas bonito voltar entre dois polícias, e ir passar um ano ao Limoeiro? O teu caso é simplicíssimo. Entendes-te com essa criatura; dá-se-lhe um par de libras, que é o que ela quer, e ficas em tua casa, sossegada, respeitada como dantes - somente mais acautelada! Aqui está!
Aquelas palavras caíam sobre os planos de Luísa, como machadadas que derrubam árvores. Às vezes a verdade que elas continham atravessava-a irresistivelmente, viva como um relâmpago, desagradável como um gume frio. Mas via naquela recusa uma ingratidão, um abandono. Depois de se ter instalado, pela imaginação, numa segurança feliz, longe, em Paris - parecia-lhe intolerável ter de voltar para casa, de cabeça baixa, sofrer Juliana, esperar a morte; e os contentamentos que entrevira naquele outro destino, agora que lhe fugiam de entre as mãos, pareciam-lhe maravilhosos, quase indispensáveis! E depois de que servia resgatar a carta a dinheiro? A criatura saberia o seu segredo! E a vida seria amarga, tendo sempre em volta de si aquele perigo a rondar!
Ficara calada, como perdida numa reflexão vaga; e de repente erguendo a cabeça, com um olhar brilhante:
— Então, dize!...
— Mas estou-te a dizer, filha...
— Não queres?
— Não! - exclamou Basílio com força. - Se tu estás doida, não estou eu!
— Oh! Pobre de mim, pobre de mim!
Deixou-se cair no sofá, tapou o rosto com as mãos. Soluços baixos sacudiam-lhe o peito.
Basílio sentou-se ao pé dela. Aquelas lágrimas mortificavam-no, impacientavam-no.
— Mas, santo nome de Deus, escuta-me!
Ela voltou para ele os olhos que reluziam sob o pranto:
— Para que dizias então, tantas vezes, que seríamos tão felizes; que se eu quisesse...
Basílio ergueu-se bruscamente:
— Pois tu pensaste em fugir, em te meter comigo num vagão, vir para Paris, viver comigo, ser a minha amante?
— Sai de casa para sempre, aí está o que eu fiz!
— Mas vais voltar para casa! - exclamou ele, quase com cólera. - Por que havias de tu fugir? Por amor? Então devíamos ter partido há um mês; não há razão agora para nos irmos. Para quê, então? Para evitar um escândalo? Com um escândalo maior, não é verdade? Um escândalo irreparável, medonho! Estou-te a falar como um amigo, Luísa! - Tomou-lhe as mãos, com muita ternura: - Tu imaginas que eu não seria feliz em ir viver contigo para Paris? Mas vejo os resultados, tenho outra experiência. O escândalo todo evita-se com umas poucas de libras. Tu imaginas que a mulher vai-se pôr a falar? O seu interesse é safar-se, desaparecer; sabe perfeitamente o que fez; que te roubou; que usou de chaves falsas. A questão é pagar-lhe.
Ela disse, com uma voz lenta:
— E o dinheiro, onde o tenho eu?
— Está claro que o dinheiro tenho-o eu! - E depois de uma pausa: - Não muito, estou mesmo um pouco atrapalhado, mas enfim... - Hesitou, disse: - se a criatura quiser duzentos mil réis, dão-se-lhe!
— E se não quiser?
— Que há de ela querer, então? Se rouba a carta é para a vender! Não é para guardar um autógrafo teu!
Vinham-lhe palavras duras; passeava pelo quarto exasperado. Que pretensão querer vir com ele para Paris, embaraçar-lhe para sempre a sua vida! E que despesa tão tola, dar um ror de libras a uma ladra! Depois aquele incidente, a carta de namoro roubada nos papéis sujos, a criada, a chave falsa do gavetão dos vestidos - parecia-lhe soberanamente burguês, um pouco pulha. E parando, para acabar:
— Enfim; oferece-lhe trezentos mil réis, se quiseres. Mas pelo amor de Deus, não faças outra; não estou para pagar as tuas distrações a trezentos mil réis cada uma!
Luísa fez-se lívida, como se ele lhe tivesse cuspido no rosto.
— Se é uma questão de dinheiro, eu o pagarei, Basílio!
Não sabia como. Que lhe importava! Pediria, trabalharia, empenharia... Não o aceitaria dele!
Basílio encolheu os ombros:
— Estás-te a dar ares; onde o tens tu?
— Que te importa? - exclamou.
Basílio coçou a cabeça, desesperado. E tomando-lhe as mãos, com uma impaciência reprimida:
— Estamos a dizer tolices, filha, estamos a irritar-nos... Tu não tens dinheiro.
Ela interrompeu-o, agarrou-lhe violentamente o braço;
— Pois sim, mas fala tu a essa mulher, fala-lhe tu, arranja tudo. Eu não a quero tornar a ver. Se a vejo, morro, acredita. Fala-lhe tu!
Basílio recuou vivamente, e batendo com o pé:
— Estás doida, mulher! Se eu lhe falo, então pede tudo, então pede-me a pele! Isso é contigo. Eu dou-te o dinheiro, tu arranja-te!
— Nem isso me fazes?
Basílio não se conteve:
— Não! Com os diabos, não!
— Adeus!
— Tu estás fora de ti, Luísa!
— Não. A culpa é minha - dizia, descendo o véu com as mãos trêmulas eu é que devo arranjar tudo!
E abriu a porta. Basílio correu a ela, prendeu-a por um braço.
— Luísa, Luísa! O que queres tu fazer? Não podemos romper assim! Escuta...
— Fujamos então, salva-me de todo! - gritou ela, abraçando-o ansiosamente.
— Caramba! Se te estou a dizer que não é possível!
Ela atirou com a porta, desceu as escadas correndo. O cupê esperava-a.
— Para o Rossio - disse.
E deitando-se para o canto da carruagem, rompeu a chorar, convulsivamente.
Basílio saiu do Paraíso muito agitado. As pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha quase vontade de não voltar ao Paraíso, calar-se, e deixar correr o marfim! Mas tinha pena dela, coitada! E depois, sem a amar, apetecia-a; era tão bem feita, tão amorosa; as revelações do vício davam-lhe um delírio tão adorável! Um conchegozinho tão picante enquanto estivesse em Lisboa... Maldita complicação! Ao entrar no hotel, disse ao seu criado:
— Quando vier o senhor Visconde Reinaldo, que vá ao meu quarto.
Estava alojado no segundo andar, com janelas para o rio. Bebeu um cálice de conhaque e estirou-se no sofá. Ao pé, na jardineira, tinha o seu buvar com um largo monograma em prata sob a coroa de conde, caixas de charutos, os seus livro - Mademoiseile Giraud, ma femme; La vierge de Mabilie; Ces friponnes!; Mémoires secrètes d'une femme de chambre; Le chien d'arrêt; Manuel du chasseur, números do Fígaro, a fotografia de Luísa, e a fotografia de um cavalo.
E soprando o fumo do charuto, começou a considerar, com horror, a "situação"! Não lhe faltava mais nada senão partir para Paris, com aquele trambolhozinho! Trazer uma pessoa, havia sete anos, a sua vida tão arranjadinha, e patatrás! Embrulhar tudo, porque à menina lhe apanharam a carta de namoro e tem medo do esposo! Ora o descaro! No fim, toda aquela aventura desde o começo fora um erro! Tinha sido uma idéia de burguês inflamado ir desinquietar a prima da Patriarcal. Viera a Lisboa para os seus negócios; era tratá-los, aturar o calor e o boeuf à la mode do Hotel Central, tomar o paquete, e mandar a pátria ao inferno!... Mas não, idiota! Os seus negócios tinham-se concluído - e ele, burro, ficara ali a torrar em Lisboa, a gastar uma fortuna em tipóias para o Largo de Santa Bárbara para quê? Para uma daquelas! Antes ter trazido a Alphonsine!
Que, verdade, verdade, enquanto estivesse em Lisboa o romance era agradável, muito excitante; porque era muito completo! Havia adulteriozinho, o incestozinho. Mas aquele episódio agora estragava tudo! Não, realmente, o mais razoável era safar-se!