Authors: Eça de Queirós
— Ah! Esquecia-me dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?
Luísa abriu muito os olhos.
— À condessa, à heroína! - exclamou Emestinho.
— Ah!
— Sim, o marido perdoa-lhe, obtém uma embaixada, e vão viver no estrangeiro. É mais natural...
— Decerto! - disse vagamente Luísa.
— E a peça acaba, dizendo o amante, o Conde de Monte Redondo: "E eu irei para a solidão morrer desta paixão funesta!" É de muito efeito! - Esteve um
momento a olhá-la, e bruscamente: - Adeus, prima Luísa, recadinhos ao Jorge!
E abalou.
Luísa entrou no Paraíso muito contrariada. Contou o encontro a Basílio. Ernestinho era tão tolo! Podia mais tarde falar naquilo, citar a hora, perguntarem-lhe quem era a amiga do Porto...
E tirando o véu, o chapéu:
— Não; realmente é imprudente vir assim tantas vezes. Era melhor não vir tanto. Pode-se saber...
Basílio encolheu os ombros, contrariado:
— Se queres não venhas.
Luísa olhou-o um momento, e curvando-se profundamente:
— Obrigada!
Ia a pôr o chapéu, mas ele veio prender-lhe as mãos; abraçou-a, murmurando:
— Pois tu falas em não vir! E eu, então? Eu que estou em Lisboa por tua causa...
— Não, realmente dizes às vezes coisas... tens certos modos...
Basílio abafou-lhe as palavras com beijos.
— Ta, ta, ta! Nada de questões! Perdoa. Estás tão linda...
Luísa, ao voltar para casa, veio a refletir naquela cena. Não - pensava -, já não era a primeira vez que ele mostrava um desprendimento muito seco por ela, pela sua reputação, pela sua saúde! Queria-a ali todos os dias, egoistamente. Que as más línguas falassem; que as soalheiras a matassem, que lhe importava? E para quê?... Porque enfim, saltava aos olhos, ele amava-a menos... As suas palavras, os seus beijos arrefeciam cada dia, mais e mais!... Já não tinha aqueles arrebatamentos do desejo em que a envolvia toda numa carícia palpitante, nem aquela abundância de sensação que o fazia cair de joelhos com as mãos trêmulas como as de um velho!... Já se não arremessava para ela, mal ela aparecia à porta, como sobre uma presa estremecida!... Já não havia aquelas conversas pueris, cheias de risos, divagadas e tontas, em que se abandonavam, se esqueciam, depois da hora ardente e física, quando ela ficava numa lassitude doce, com o sangue fresco, a cabeça deitada sobre os braços nus! - Agora! Trocado o último beijo, acendia o charuto, como num restaurante ao fim do jantar! E ia logo a um espelho pequeno que havia sobre o lavatório dar uma penteadela no cabelo com um pentezinho de algibeira. (O que ela odiava o pentezinho!) As vezes até olhava o relógio!... E enquanto ela se arranjava não vinha, como nos primeiros tempos, ajudá-la, pôr-lhe o colarinho, picar-se nos seus alfinetes, rir em volta dela, despedir-se com beijos apressados da nudez dos seus ombros antes que o vestido se apertasse. Ia rufar nos vidros - ou sentado, com um ar macambúzio, bamboleava a perna!
E depois positivamente não a respeitava, não a considerava... Tratava-a por cima do ombro, como uma burguesinha, pouco educada e estreita, que apenas conhece o seu bairro. E um modo de passear, fumando, com a cabeça alta, falando no "espírito de madame de tal", nas "toaletes da condessa de tal"! Como se ela fosse estúpida, e os seus vestidos fossem trapos! Ah, era secante! E parecia, Deus me perdoe, parecia que lhe fazia uma honra, uma grande honra em a possuir... Imediatamente lembrava-lhe Jorge, Jorge que a amava com tanto respeito! Jorge, para quem ela era decerto a mais linda, a mais elegante, a mais inteligente, a mais cativante!... E já pensava um pouco que sacrificara a sua tranqüilidade tão feliz a um amor bem incerto!
Enfim, um dia que o viu mais distraído, mais frio, explicou-se abertamente com ele. Direita, sentada no canapé de palhinha, falou com bom senso, devagar, com um ar digno e preparado: Que percebia bem que ele se aborrecia; que o seu grande amor tinha passado; que era portanto humilhante para ela verem-se nessas condições, e que julgava mais digno acabarem...
Basílio olhava-a, surpreendido da sua solenidade; sentia um estudo, uma afetação naquelas frases; disse muito tranqüilamente, sorrindo:
— Trazias isso decorado!
Luísa ergueu-se bruscamente; encarou-o, teve um movimento desdenhoso dos lábios.
— Tu estás doida, Luísa?
— Estou farta. Faço todos os sacrifícios por ti; venho aqui todos os dias; comprometo-me, e para quê? Para te ver muito indiferente, muito secado...
— Mas meu amor...
Ela teve um sorriso de escárnio.
— Meu amor! Oh! São ridículos esses fingimentos!
Basílio impacientou-se.
— Já isso cá me faltava, essa cena! - exclamou impetuosamente. E cruzando os braços diante dela: - Mas que queres tu? Queres que te ame como no teatro, em São Carlos? Todas sois assim! Quando um pobre diabo ama naturalmente, como todo o mundo, com o seu coração, mas não tem gestos de tenor, aqui del rei que é frio, que se aborrece, é ingrato... Mas que queres tu? Queres que me atire de joelhos, que declame, que revire os olhos, que faça juras, outras tolices?
— São tolices que tu fazias...
— Ao principio! - respondeu ele brutalmente. - Já nos conhecemos muito para isso, minha rica.
E havia apenas cinco semanas!
— Adeus! - disse Luísa.
— Bem. Vais zangada?
Ela respondeu, com os olhos baixos, calçando nervosamente as luvas:
— Não.
Basílio pôs-se diante da porta, e estendendo os braços:
— Mas sê razoável, minha querida. Uma ligação como a nossa não é o dueto do Fausto. Eu amo-te; tu, creio, gostas de mim; fazemos os sacrifícios necessários; encontramo-nos, somos felizes... Que diabo queres tu mais? Por que te queixas?
Ela respondeu com um sorriso irônico e triste:
— Não me queixo. Tens razão.
— Mas não vás zangada, então.
— Não...
— Palavrinha?
— Sim...
Basílio tomou-lhe as mãos.
— Dê então um beijinho em Bibi...
Luísa beijou-o de leve na face.
— Na boquinha, na boquinha! - E ameaçando-a com o dedo, fitando-a muito: - Ah, geniozinho! Tens bem o sangue do Sr. Antônio de Brito, nosso extremoso tio, que arrepelava as criadas pelos cabelos! - E sacudindo-lhe o queixo: - E vens amanhã?
Luísa hesitou um momento:
— Venho.
Entrou em casa exasperada, humilhada. Eram seis horas. Juliana veio dizer-lhe logo muito quizilada: que a Joana tinha saído às quatro horas; não tinha voltado; o jantar estava por acabar...
— Onde foi?
Juliana encolheu os ombros com um sorrisinho.
Luísa percebeu. Tinha ido a algum amante, a algum amor... Teve um gesto de piedade desdenhosa.
— Há de lucrar muito com isso. Boa tola! - disse.
Juliana olhou-a espantada.
— "Está bêbeda! - pensou.
— Bem, que se lhe há de fazer? - exclamou Luísa. - Esperarei...
E passeando pelo quarto, excitada, revolvendo o seu despeito:
— Que egoísta, que grosseiro, que infame! E é por um homem assim que uma mulher se perde! É estúpido!
Como ele suplicava, se fazia pequenino, humilde ao princípio! O que são os amores dos homens! Como têm a fadiga fácil!
E imediatamente lhe veio a idéia de Jorge! Esse não! Vivia com ela havia três anos - e o seu amor era sempre o mesmo, vivo, meigo, dedicado. Mas o outro! Que indigno! Já a conhecia há muito! Ah! Estava bem certa agora, nunca a amara, ele! Quisera-a por vaidade, por capricho, por distração, para ter uma mulher em Lisboa! É o que era! Mas amor? Qual!
E ela mesma, por fim! Amava-o, ela? Concentrou-se, interrogou-se... Imaginou casos, circunstâncias; se ele a quisesse levar para longe, para França, iria? Não! Se por um acaso, por uma desgraça enviuvasse, antevia alguma felicidade casando com ele? Não!
Mas então!... E como uma pessoa que destapa um frasco muito guardado, e se admira vendo o perfume evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o seu coração vazio. O que a levara então para ele?... Nem ela sabia; não ter nada que fazer, a curiosidade romanesca e mórbida de ter um amante, mil vaidadezinhas inflamadas, um certo desejo físico... E sentira-a, porventura, essa felicidade, que dão os amores ilegítimos, de que tanto se fala nos romances e nas óperas, que faz esquecer tudo na vida, afrontar a morte, quase fazê-la amar? Nunca! Todo o prazer que sentira ao princípio, que lhe parecera ser o amor - vinha da novidade, do saborzinho delicioso de comer a maçã proibida, das condições do mistério do Paraíso, de outras circunstâncias talvez, que nem queria confessar a si mesma, que a faziam corar por dentro!
Mas que sentia de extraordinário agora? Bom Deus, começava a estar menos comovida ao pé do seu amante, do que ao pé do seu marido! Um beijo de Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia três anos! Nunca se secara ao pé de Jorge, nunca! E secava-se positivamente ao pé de Basílio! Basílio, no fim, o que se tornara para ela? Era como um marido pouco amado, que ia amar fora de casa! Mas então, valia a pena?...
Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez! Porque enfim, ela e Basílio estavam nas condições melhores para obterem uma felicidade excepcional: eram novos, cercava-os o mistério, excitava-os a dificuldade... Por que era então que quase bocejavam? E que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um bocadinho do céu. Mas depois!... Seria pois necessário estar sempre a começar, para poder sempre sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E aparecia-lhe então nitidamente a explicação daquela existência de Leopoldina, inconstante, tomando um amante, conservando-o uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e renovando assim constantemente a flor da sensação! - E, pela lógica tortuosa dos amores ilegítimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no segundo!
Logo no dia seguinte pôs-se a dizer consigo que era bem longe o Paraíso! Que maçada, por aquele calor, vestir-se, sair! Mandou saber de D. Felicidade por Juliana e ficou em casa, de roupão branco, preguiçosa, saboreando a sua preguiça.
Nessa tarde recebeu uma carta de Jorge: que ainda se demorava, mas que a sua viuvez começava a pesar-lhe. Quando se veria enfim na sua casinha, na sua alcovinha?...
Ficou muito comovida. Um sentimento de vergonha, de remorso, uma compaixão terna por Jorge, tão bom, coitado! Um indefinido desejo de o ver e de o beijar, a recordação de felicidades passadas perturbaram-na até às profundidades do seu ser. Foi logo responder-lhe, jurando-lhe que também já estava farta de estar só, que viesse, que era estúpida semelhante separação... E era sincera naquele momento.
Tinha fechado o envelope, quando Juliana lhe veio trazer "uma carta do hotel". Basílio mostrava-se desesperado:
... Como não vieste, vejo que estás zangada; mas é decerto o teu orgulho, não o teu amor que te domina; não imaginas o que senti quando vi que não vinhas hoje. Esperei até às cinco horas; que suplício! Fui talvez seco, mas tu também estavas implicativa. Devemos perdoar-nos ambos, ajoelharmos um diante do outro, e esquecer todo o despeito no mesmo amor... Vem amanhã. Adoro-te tanto! Que outra prova queres, que esta que te dou de abandonar os meus interesses, as minhas relações, os meus gostos, e enterrar-me aqui em Lisboa, etc.
Ficou muito nervosa, sem saber o que havia de fazer, o que havia de querer. Aquilo era verdade. Por que estava ele em Lisboa? Por ela. Mas se reconhecia agora - que o não amava, ou tão pouco! E depois era vil trair assim Jorge, tão bom, tão amoroso, vivendo todo para ela. Mas se Basílio realmente estivesse tão apaixonado!... As suas idéias redemoinhavam, como folhas de outono, violentadas por ventos contraditórios. Desejava estar tranqüila, que a não perseguissem. Para que voltara aquele homem? Jesus! Que havia de fazer? Tinha os seus pensamentos, os seus sentimentos numa dolorosa trapalhada.
E na manhã seguinte estava na mesma hesitação. Iria, não iria? O calor fora, a poeirada da rua faziam-lhe apetecer mais a casa! Mas que desapontamento, o do pobre rapaz também! Atirou ao ar uma moeda de cinco tostões. Era cunho, devia ir. Vestiu-se sem vontade, secada - tendo todavia um certo desejo dos refinamentos de prazer que dão as expansões da reconciliação...
Mas que surpresa! Esperava encontrá-lo humilde e de joelhos; achou-o com a testa franzida e muito áspero.
— Luísa, parece incrível; por que não vieste ontem?
Na véspera, Basílio, quando viu que ela faltava, teve um grande despeito e medo maior; a sua concupiscência receou perder aquele lindo corpo de rapariga, e o seu orgulho escandalizou-se de ver libertar-se aquela escravazinha dócil. Resolveu portanto, a todo o custo, chamá-la ao rego. Escreveu-lhe; e mostrando-se submisso para a atrair, decidiu ser severo para a castigar. - E acrescentou:
— É uma criancice ridícula. Por que não vieste?
Aquele modo enraiveceu-a:
— Porque não quis.
Mas emendou logo:
— Não pude.
— Ah! É essa a maneira por que respondes à minha carta, Luísa?
— E tu, é esse o modo com que me recebes?
Olharam-se um momento, detestando-se.
— Bem; queres uma questão? És como as outras.
— Que outras?
E toda escandalizada:
— Ah! É demais! Adeus!
Ia sair.
— Vais-te, Luísa?
— Vou. É melhor acabarmos por uma vez...
Ele segurou o fecho da porta rapidamente.
— Falas sério, Luísa?
— Decerto. Estou farta!
— Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se silenciosamente. Ela deu um passo, e Basílio com a voz um pouco trêmula:
— Então, é para sempre? Nunca mais?
Luísa parou, branca. Aquela triste palavra nunca mais deu-lhe uma saudade, uma comoção. Rompeu a chorar.
As lágrimas tornavam-na sempre mais linda. Parecia tão dolorida, tão frágil, tão desamparada!...
Basílio caiu-lhe aos pés; tinha também os olhos úmidos.
— Se tu me deixares, morro!
Os seus lábios uniram-se num beijo profundo, longo, penetrante. A excitação dos nervos deu-lhes momentaneamente a sinceridade da paixão; e foi uma manhã deliciosa.
Ela prendia-o nos braços nus, pálida como cera, balbuciava:
— Não me deixes nunca, não?
— Juro-to! Nunca, meu amor!
Mas fazia-se tarde; era necessário ir-se! E a mesma idéia decerto acudiu-lhes - porque se olharam avidamente, e Basílio murmurou: