Authors: Eça de Queirós
Luísa ergueu-se, com um salto, lívida. Era Jorge! Amarrotou convulsivamente a carta, quis escondê-la no bolso, - o roupão não tinha bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para o sarcófago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas à mesa, a vida suspensa.
O reposteiro ergueu-se - e reconheceu logo o chapéu de veludo azul de D. Felicidade.
— Aqui metida, sua brejeira! Que estavas tu aqui a fazer? Que tens tu, filha, estás como a cal...
Luísa deixou-se cair no fauteuil1, branca e fria; disse com um sorriso cansado:
—`Estava a escrever, deu-me uma tontura...
— Ai! Tonturas, eu! - acudiu logo D. Felicidade. - É uma desgraça, a cada momento a agarrar-me aos móveis; até tenho medo de andar só. Falta de purgas!
— Vamos para o quarto! - disse logo Luísa. - Estamos melhor no quarto.
Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.
Atravessaram a sala; Juliana começava a arrumar. Luísa ao passar, viu na pedra da consola, debaixo do espelho oval, uma pouca de cinza; era da véspera, do charuto dele! Sacudiu-a - e ao erguer os olhos, ficou pasmada de se ver tão pálida.
A costureira vestida de preto, com um chapéu de fitas roxas, esperava sentada à beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho nos joelhos; vinha provar o corpete de um vestido composto; assentou, pregou, alinhavou, falando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha seca; e apenas ela saiu, leve, com o seu andar de sombra, o xale tinto muito cingido às omoplatas magras - D. Felicidade começou logo a falar dele, do Conselheiro. Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois, senhores, nem lhe viera falar! Fizera-lhe uma cortesia muito seca, por demais, e tique-taque por ali fora, que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! Aquelas indiferenças matavam-na. E não as compreendia, não realmente não as compreendia...
— Porque enfim - exclamava - eu bem me conheço, não sou nenhuma criança, mas também não sou nenhum caco! Pois não é verdade?
— Certamente - disse Luísa distraída. Lembrava-lhe a carta.
— Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta, decotada, ainda valho. O que são ombros e colo é do melhor!
— Luísa ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:
— Do melhor! Tomaram-no muitas novas!
— Creio bem - concordou Luísa, sorrindo vagamente.
— E ele também não é nenhum rapazinho novo...
— Não...
— Mas muito bem conservado! - E os olhos luziam-lhe. uma mulher muito feliz!
— Muito...
— Um homem de apetecer! - suspirou D. Felicidade. E Luísa então:
— Tu esperas um instantinho? Vou lá dentro e volto já.
— Vai, filha, vai.
Luísa correu ao escritório, direita ao sarcófago. Estava vazio! E a carta dela, Santo Deus?
Chamou logo Juliana, aterrada.
— Você despejou o caixão dos papéis?
— Despejei, sim, minha senhora - respondeu muito tranqüilamente.
E com interesse:
— Por quê, perdeu-se algum papel?
Luísa fazia-se pálida.
— Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde o despejou você?
— No barril do lixo, como é costume, minha senhora; imaginei que nada servia...
— Ah! Deixe ver!
Subiu rapidamente à cozinha. Juliana atrás, ia dizendo:
— Ora esta! Pois ainda não há cinco minutos! O caixão estava mais cheio... Andei a dar uma arrumadela no escritório... Valha-me Deus, se a senhora tem dito...
Mas o barril do lixo estava vazio, Joana tinha-o ido despejar abaixo naquele instantinho; e vendo a inquietação de Luísa:
— Por quê, perdeu-se alguma coisa?
— Um papel - disse Luísa, que olhava em redor, pelo chão, muito branca.
— Iam uns poucos de papéis, minha senhora - disse a rapariga -, eu deitei tudo ao despejo.
— Podia ter ficado algum caído por fora, Sra. Joana - lembrou timidamente Juliana.
— Vá ver, vá ver, Joana - acudiu Luísa com uma esperança.
Juliana parecia aflita:
— Jesus, senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas para que não disse a senhora?...
— Bem, bem, a culpa não é sua, mulher...
— Credo, que até se me está a embrulhar o estômago... E é coisa de importância, minha senhora?
— Não, é uma conta...
— Valha-me Deus!...
Joana voltou, sacudindo um papel enxovalhado. Luísa agarrou-o, leu:-".. o diâmetro do primeiro poço de exploração..."
— Não, não é isto! - exclamou toda contrariada.
— Então foi pra baixo pra o cano, minha senhora; não está! mais nada.
— Viu bem?
— Esquadrinhei tudo...
E Juliana continuava, desolada:
— Antes queria perder dez tostões! Uma assim! Eu, minha senhora, podia lá adivinhar...
— Bem, bem! - murmurou Luísa descendo.
Mas estava assustada; sentia mesmo uma suspeita indefinida... Lembrou-lhe o bilhete que escrevera na véspera a Basílio, e que metera, todo amarrotado, no bolso do vestido... Entrou no quarto, agitada.
D. Felicidade tirara o chapéu, acomodara-se na causeuse.
— Tu desculpas, hem? - fez Luísa.
— Anda, filha, anda! Que é?
— Perdi uma conta - respondeu.
Foi ao guarda-vestidos; achou logo o bilhete na algibeira... Aquilo serenou-a. A carta tinha ido para o lixo, decerto. Mas que imprudência!
— Bem, acabou-se! - disse sentando-se resignada.
E D. Felicidade imediatamente, baixando a voz muito confidencialmente:
— Ora, eu vinha-te falar numa coisa. Mas vê lá! Olha que é segredo.
Luísa ficou logo sobressaltada.
— Tu sabes - continuou D. Felicidade, devagar, com pausas - que a minha criada, a Josefa, está para casar com o galego... O homem é de ao pé de Tui, e diz que na terra dele há uma mulher que tem virtude para fazer casamentos que é uma coisa milagrosa... Diz que é o mais que há... Em deitando a sorte a um o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja logo o casamento e é a maior felicidade.
Luísa tranqüilizada, sorriu.
— Escuta - acudiu D. Felicidade -, não te ponhas já com as tuas coisas...
No seu tom grave havia um respeito supersticioso.
— Diz que tem feito milagres. Homens que tinham desamparado raparigas, outros que não faziam caso delas, maridos que tinham amigas; enfim toda a sorte de ingratidão... Em a mulher deitando o encanto, os homens começam a esmoecer, a arrepender-se, a apaixonar-se, e estão pelo beiço... A rapariga contou-me isso. Eu lembrei-me logo...
— De deitar uma sorte ao Conselheiro! - exclamou Luísa.
— Que te parece?
Luísa deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade quase se escandalizou. Contou outros casos: um fidalgo que desonrara uma lavadeira; um homem que abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma bêbeda... Em todos a sorte operara de um modo fulminante, produzindo um amor súbito e fogoso pela pessoa desprezada. Apareciam logo rendidos, se estavam perto; se estavam longe, voltavam, ávidos, a pé, a cavalo, na mala-posta, apressando-se, ardendo... E entregavam-se, mansos e humildes como escravos acorrentados...
— Mas o galego - continuava ela muito excitada - diz que para ir à terra, falar à mulher, levar o retrato do Conselheiro, é necessário o retrato dele, o meu, é necessário o meu; ir falar, voltar - quer sete moedas!...
— Oh! D. Felicidade! - fez Luísa repreensivamente.
— Não me digas, não venhas com as tuas! Olha que eu sei de casos...
E erguendo-se:
— Mas são sete moedas! Sete moedas! - exclamou, arregalando os olhos.
Juliana apareceu à porta, e muito baixinho, com um sorriso:
— A senhora faz favor?
Chamou-a para o corredor, em segredo:
— Esta carta. Que vem do hotel.
Luísa fez-se escarlate.
— Credo, mulher! Não é necessário fazer mistérios!
Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor; era a lápis, escrita à pressa:
"Meu amor" - dizia Basílio - "por um feliz acaso descobri o que precisávamos, um ninho discreto para nos vermos...
E indicava a rua, o número, os sinais, o caminho mais perto.
...Quando vens, meu amor? Vem amanhã. Batizei a casa com o nome de Paraíso; para mim, minha adorada, é com efeito o Paraíso. Eu espero-te lá desde o meio-dia; logo que te aviste, desço.
Aquela precipitação amorosa em arranjar o ninho - provando uma paixão impaciente, toda ocupada dela - produziu-lhe uma dilatação doce do orgulho; ao mesmo tempo que aquele Paraíso secreto, como num romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionais; e todas as suas inquietações, os sustos da carta perdida se dissiparam de repente sob uma sensação cálida, como flocos de névoa sob o sol que se levanta.
Voltou ao quarto, com o olhar risonho.
— Que te parece, hem? - perguntou logo D. Felicidade, a quem a sua idéia ocupava tiranicamente.
— O quê?
— Achas que mande o homem a Tui?
Luísa encolheu os ombros; veio-lhe um tédio de tais enredos de bruxaria, misturados a amores caturras. Na vaidade da sua intriga romântica, achava repugnante aquele sentimentalismo senil.
— Tolices! - disse com muito desdém.
— Oh, filha! Não me digas, não me digas! - acudiu desolada D. Felicidade.
— Bem, então manda, manda! - fez Luísa, já impaciente.
— Mas são sete moedas! - exclamou D. Felicidade, quase chorosa.
Luísa pôs-se a rir.
— Por um marido? Acho barato...
— E se a sorte falha?
— Então é caro!
D. Felicidade deu um grande "ai!" Estava muito infeliz, naquela hesitação entre os impulsos da concupiscência e as prudências da economia. Luísa teve pena dela, e, tirando um vestido do guarda-roupa:
— Deixa lá, filha! Não hão de ser necessárias bruxarias!...
D. Felicidade ergueu os olhos ao céu.
— Vais sair? - perguntou melancolicamente.
— Não.
D. Felicidade propôs-lhe então que viesse com ela à Encarnação. Visitavam a Silveira, coitada, que tinha um furúnculo! E viam a armação da igreja para a festa; estreava-se o frontal novo, um primor!
— E estou também com vontade de ir rezar uma estaçãozinha, para aliviar cá por dentro - ajuntou, suspirando.
Luísa aceitou. Apetecia-lhe ir ver altares alumiados, ouvir o ciciar de rezas no coro, como se os requintes devotos dissessem bem com as suas disposições sentimentais. Começou a vestir-se depressa.
— Como tu estás gorda, filha! - exclamou D. Felicidade admirada, vendo-lhe os ombros, o colo.
Luísa diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente, contente das suas linhas, acariciando devagarinho, voluptuosamente, a pele branca e fina.
— Redondinha - disse, namorando-se.
— Redondinha? Vais-te a fazer uma bola!
E acrescentou, tristemente:
— Também com a tua vida, um marido como o teu, regaladinha, sem filhos, sem cuidados...
— Vamos lá, minha rica - disse Luísa -, que as tristezas não te têm feito emagrecer.
— Pois sim, pois sim! Mas... - e parecia desolada, como curvada sob as suas próprias ruínas - cá por dentro é uma desgraça, estômago, fígado...
— Se a mulher de Tui faz o milagre, põe tudo isso como novo!
Felicidade sorriu, com uma dúvida desconsolada.
— Sabes que tenho um chapéu lindo? - exclamou de repente Luísa. - Não viste? Lindo!
Foi logo buscá-lo ao guarda-vestidos. Era de palha fina, guarnecido de miosótis.
— Que te parece?
— É um primor!
Luísa mirava-o dando pancadinhas com as pontas dos dedos nas florzinhas azuis.
— Dá frescura - fez D. Felicidade.
— Não é verdade?
Pô-lo com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe bem! Basílio se a visse havia gostar, pensou. Era bem possível que o encontrassem...
— Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante; achava tão delicioso viver, sair, ir à Encarnação, pensar no seu amante!... E toda no ar, procurava pelo as chavinhas do toucador.
Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar, talvez! Ia ver! Saiu correndo, tontinha, cantarolando:
— Amici, ta notte e bella...
La ra la la...
Quase topou com Juliana, que varria o corredor.
— Não deixe de engomar a saia bordada para amanhã, Juliana!
— Sim, minha senhora. Está em goma!
E seguindo-a com um olhar feroz:
— Canta, piorrinha; canta, cabrazinha; canta, bebedazinha!...
E ela mesma, tomada subitamente de um júbilo agudo, atirou vassouradas rápidas, soltando na sua voz rachada:
— Além de amanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se diz...
Se tal for verdade, se não for patranha...
E com um espremido enfático:
— Se-e-rei bem feliz!
Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião e Julião passeavam em São Pedro de Alcântara.
Sebastião estivera contando a sua cena com Luísa, e como desde então a sua estima por ela crescera. Ao principio escabreara-se, sim...
— Mas teve razão! Assim de surpresa, ouvir uma daquelas! E eu levei a coisa mal, fui muito à bruta...
Depois, coitadinha, concordara logo, mostra-se muito desgostosa, toda zelosa do seu pudor, pedira-lhe conselhos... Até tinha as lágrimas nos olhos.
— Eu disse-lhe logo que o melhor era falar ao primo, dizer o que se passava... Que te parece?
— Sim - disse vagamente Julião.
Tinha-o escutado distraído, chupando a ponta do cigarro. O seu rosto térreo cavava-se, com uma cor mais biliosa.
— Então achas que fiz bem, hem?
E depois de uma pausa:
— Que ela é uma senhora de bem às direitas! As direitas, Julião!
Continuaram calados. O dia estava encoberto e abafado, com um ar de trovoada; grossas nuvens pesadas e pardas iam-se acumulando, enegrecendo para o lado da Graça por trás das colinas; um vento rasteiro passava por vezes, pondo um arrepio nas folhas das árvores.
— De maneira que agora estou descansado - resumiu Sebastião. - Não te parece?
Julião encolheu os ombros com um sorriso triste:
— Quem me dera os teus cuidados, homem! - disse.
E falou então com amargura nas suas preocupações. - Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na Escola, e preparava-se para ele. Era a sua tábua de salvação, dizia; se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a clientela podia vir, e a fortuna... E, que diabo, sempre era estar de dentro!... Mas a certeza da sua superioridade não o tranqüilizava - porque enfim em Portugal, não é verdade? Nestas questões a ciência, o estudo, o talento são uma história; o principal são os padrinhos! Ele não os tinha - e o seu concorrente, um sensaborão, era sobrinho de um diretor-geral, tinha parentes na Câmara; era um colosso! Por isso ele trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensável meter também as suas cunhas! Mas quem?