O Primo Basílio (17 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Cerrou os olhos. O movimento muito lançado do cupê, o calor, a presença dele, o contato da sua mão, do seu joelho, amoleciam-na. Sentia um desejo a alargar-se dentro do peito.

— Em que vais tu a pensar? - perguntou-lhe ele baixo, muito terno. Luísa fez-se vermelha. Não respondeu. Tinha medo de falar, de lhe dizer...

Basílio tomou-lhe a mão devagarinho, com respeito, com cuidado, como coisa preciosa e santa; e beijou-lha de leve, com a servilidade de um negro e a unção de um devoto. Aquela carícia tão humilde, tão tocante, quebrou-a; os seus nervos distenderam-se; deixou-se cair para o canto do cupê, rompeu a chorar...

Que era? Que tinha? Prendera-a nos braços, beijava-a, dizia-lhe palavras loucas.

— Queres que fujamos?

As suas lagrimazinhas redondas e luminosas, rolando devagarinho sobre a aquela face mimosa, enterneciam-no, e davam aos seus desejos uma vibração quase dolorosa.

— Foge comigo, vem, levo-te! Vamos para o fim do mundo!

Ela soluçou, murmurou muito doridamente:

— Não digas tolices.

Ele calou-se; pôs a mão sobre os olhos com uma atitude melancólica, pensando:

— "Estou a dizer tolices, não há que ver!"

Luísa limpava as lágrimas, assoando-se devagarinho.

— É nervoso - disse. - É nervoso. Voltamos, sim? Não me sinto bem. volte.

Basílio mandou bater para Lisboa.

Ela queixava-se de um ameaço de enxaqueca. Ele tinha-lhe tomado a mão, repetia-lhe as mesmas ternuras: chamava-lhe "sua pomba", "seu ideal". E pensava: - "Estás caída!"

Pararam na Praça da Alegria. Luísa espreitou, saltou depressa, dizendo:

— Amanhã, não faltes, hem?

Abriu o guarda-solinho, carregou-o sobre o rosto, subiu rapidamente para a Patriarcal.

Basílio então desceu os vidros, e respirou com satisfação. Acendeu outro charuto, estendeu as pernas, gritou:

— Ao Grêmio, ó Pintéus!

Na sala de leitura, o seu amigo o Viscondo Reinaldo, que havia anos vivia em Londres, e muito em Paris também, lia o Times languidamente, enterrado numa poltrona. Tinham vindo ambos de Paris, com a promessa de voltarem juntos por Madri. Mas o calor desolava Reinaldo; achava a temperatura de Lisboa reles; trazia lunetas defumadas; e andava saturado de perfumes, por causa "do cheiro ignóbil de Portugal". Apenas viu Basílio deixou escorregar o Times nu tapete, e com os braços moles, a voz desfalecida:

— E então essa questão da prima, vai ou não vai? Isto está horrível, menino! Eu morro! Preciso o Norte! Preciso a Escócia! Vamos embora! Acaba com essa prima. Viola-a. Se ela te resiste, mata-a!

Basílio, que se estendera numa poltrona, disse, estirando muito os braços:

— Oh! Está caidinha!

— Pois avia-te, menino, avia-te!

Apanhou moribundamente o Times, bocejou, pediu soda - soda inglesa!

Não havia, veio dizer o criado. Reinaldo fitou Basílio com espanto, com terror, e murmurou soturnamente:

— Que abjeção de país!

Quando Luísa entrou, Juliana, ainda vestida, disse-lhe logo à porta:

— O Sr. Sebastião está na sala. Tem estado um ror de tempo à espera... Já cá estava quando eu cheguei.

Tinha vindo com efeito havia meia hora. Quando a Joana lhe veio abrir, muito encarnada, com ar estremunhado, e resmungou que a senhora estava para fora, Sebastião ia logo descer, com o alívio delicioso de uma dificuldade adiada. Mas reagiu, retesou a vontade, entrou, pôs-se a esperar... Na véspera tinha decidido falar-lhe, avisá-la que aquelas visitas do primo, tão repetidas, com espalhafato, numa rua maligna, podiam comprometê-la... Era o diabo, dizer-lho!... Mas era um dever! Por ela, pelo marido, pelo respeito da casa! Era forçoso acautelá-la... E não se sentia acanhado. Perante as reclamações do dever, vinham-lhe as energias da decisão. O coração batia-lhe um pouco, sim, e estava pálido... Mas, que diabo havia de lho dizer!...

E passeando pela sala com as mãos nos bolsos, ia arranjando as suas frases, procurando-as muito delicadas, bem amigas...

Mas a campainha retiniu, um frufru de vestido roçou o corredor - e a sua coragem engelhou-se como um balão furado. Foi-se logo sentar ao piano, pôs-se a bater vivamente no teclado. Quando Luísa entrou, sem chapéu, descalçando as luvas, ergueu-se, disse embaraçado:

— Tenho estado aqui a trautear um bocado... Estava à espera... Então de onde vem?

Ela sentou-se, cansada. Vinha da modista - disse. Fazia um calor! Por que não tinha entrado as outras vezes? Não estava com visitas de cerimônia! Era família, era seu primo que viera de fora.

— Está bom, seu primo?

— Bom. Tem estado aqui, bastante. Aborrece-se muito em Lisboa, coitado! Ora, quem vive lá fora!

Sebastião repetiu, esfregando devagar os joelhos:

Está claro, quem vive lá fora!

— E Jorge, tem-lhe escrito? - perguntou Luísa.

— Recebi carta ontem.

Também ela. Falaram de Jorge, dos tédios da jornada, do que contava do fantástico parente de Sebastião, da demora provável...

— Faz-nos uma falta, aquele maroto! - disse Sebastião.

Luísa tossiu. Estava um pouco pálida, agora. Passava às vezes a mão pela testa, cerrando os olhos.

Sebastião, de repente, teve uma decisão:

— Pois eu vinha, minha rica amiga... - começou.

Mas viu-a ao canto do sofá com a cabeça baixa, a mão sobre os olhos.

— Que tem? Está incomodada?

— É a enxaqueca que me veio de repente. Já tinha tido ameaços na rua. E com uma força!

Sebastião tomou logo o chapéu:

— E eu a maçá-la! É necessário alguma coisa? Quer que vá chamar o médico?

— Não! Vou-me deitar um momento; passa logo.

Que não apanhasse ar, ao menos, recomendava ele. Talvez sinapismos ou limão nas fontes... E em todo o caso, se não estivesse melhor que o mandasse chamar...

— Isto passa! E apareça, Sebastião! Não se esconda...

Sebastião desceu, respirou largamente; e pensava:

— "Eu não me atrevo, Santo Deus!..." - Mas à porta, ao levantar os olhos, no fundo escuro da loja de carvão o vulto enorme da carvoeira, de chambre

branco, estendendo o olhar, cocando; por cima, três das Azevedos, entre as velhas cortinas de cassa, juntavam as suas cabecinhas riçadas nalgum conciliáculo maligno! Por trás dos vidros a criada do doutor costurava, com olhares de lado, a cada momento, que lambiam a rua; e ao lado, na loja de móveis, Sentiam-se as expectorações do patriota.

— "Não passa um gato que esta gente não dê fé!" - pensou Sebastião. "E que línguas! Que línguas! Devo fazê-lo, ainda que estoure! Se ela amanhã está melhor, digo-lhe tudo!"

Estava com efeito já boa, às nove horas, no dia seguinte, quando Juliana a foi acordar, com "uma cartinha da senhora D. Leopoldina".

A criada de Leopoldina, a Justina, uma magrita muito trigueira, de buço e esperava na sala de jantar. Era amiga de Juliana; beijocavam-se muito, diziam-se sempre finezas. E depois de ter guardado a resposta de Luísa num cabazinho que trazia no braço, traçou o xale e muito risonha:

— Então que há por cá de novo, Sra. Juliana?

— Tudo velho, Sra. Justina. E mais baixo:

— O primo da senhora, agora, vem todos os dias. Perfeito rapaz! Tossiram ambas, baixinho, com malícia.

— E por lá, Sra. Justina, quem vai por lá?

Justina fez um aceno de desprezo.

— Um rapazola, um estudante. Fraca coisa!...

— Sempre pinga - disse Juliana com um risinho.

A outra exclamou:

— Olha quem! O pelintra! Nem cheta!

E erguendo o olhar com saudade:

— Ai, como o Gama não há! Quando era do tempo do Gama, isso sim! Nunca ia que me não desse os seus dez tostões, às vezes meia libra. Ai, devo dize-lo, foi ele que me ajudou para o meu vestido de seda! Este agora!... E um fedelho. Eu nem sei como a senhora suporta aquilo! E amarelado, enfezado! Aquilo pode prestar para nada!

Juliana disse então:

— Pois olhe, Sra. Justina, eu agora é que começo a considerar: é onde se está bem, é em casas em que há podres! Encontrei ontem a Agostinha, a que está em casa do comendador, ao Rato... Pois senhor, não se imagina. É tudo o que se pode! Tudo! Anel, vestido de seda, sombrinha, chapéu! E de roupa branca diz que é um enxoval. E tudo o Couceiro, o que está com a ama. E pelas festas sua moeda. Diz que é um homem rasgado. Ela também, verdade seja, tem um trabalhão: fá-lo entrar pelo jardim, e para o fazer sair tem de esperar...

— Ah, lá não! - acudiu a Justina. - Lá é pela escada.

Riram baixinho, saboreando o escândalo.

— Gênios... - disse Juliana.

— Ai, lá isso, o nosso tem estômago - afirmou Justina. - Encontram na escada, e tanto se lhe dá...

E muito afetuosamente, arranjando o xale:

— E adeusinho, que se faz tarde, Sra. Juliana. Ela vem hoje cá jantar, a senhora. Estive toda a manhã a engomar uma saia; desde às sete!

— Também eu por cá - disse Juliana. - Elas é o que tem; quando há amante sempre há mais que engomar.

— Deitam mais roupa branca, deitam - observou a Justina.

— As que deitam! - exclamou Juliana, com desprezo.

Mas Luísa tocou a campainha dentro.

— Adeus, Sra. Juliana - disse logo a outra, ajeitando o chapéu.

— Adeus, Sra. Justina.

Foi acompanhá-la ao patamar. Beijocaram-se. Juliana voltou muito apressada ao quarto de Luísa; estava já a pé, vestindo-se, muito alegre, cantarolando.

O bilhete de Leopoldina dizia na sua letra torta:

Meu marido vai hoje para o campo. Eu vou-te pedir de jantar, mas não posso ir antes das seis. Convém-te?

Ficou muito contente. Havia semanas que a não via... O que iam rir, palrar! E o Basílio devia vir às duas. Era um dia divertido, bem preenchido...

Foi logo à cozinha dar as suas ordens para o jantar. Quando descia, o criadito de Sebastião tocava a campainha, com um ramo de rosas, a saber se estava melhor.

— Que sim, que sim! - gritou logo Luísa. - E para o tranqüilizar, para que ele não viesse: - Que estava boa, que até talvez saísse...

As rosas, sim, é que vinham a propósito. Foi ela mesma pô-las nos vasos, olhando sempre, o olhar vivo, satisfeita de si, da sua vida que se tornava interessante, cheia de incidentes...

E às duas horas, vestida, veio para a sala, pôs-se ao piano a estudar a Medjé de Gounod, que Basílio trouxera, e que a encantava agora muito, com os seus acentos suspirados e cálidos.

— Às duas e meia, porém, começou a estar impaciente; os dedos embrulhavam-se no teclado. - "Já devia ter vindo, Basílio!" - pensava.

Foi abrir as janelas, debruçar-se para a rua; mas a criada do doutor, que costurava por dentro dos vidros, ergueu logo olhos tão sôfregos que Luísa fechou rapidamente as vidraças. Veio recomeçar a melodia, já nervosa.

Uma carruagem rolou. Ergueu-se agitada; batia-lhe o coração. A carruagem passou...

Três horas já! O calor parecia-lhe maior, insuportável; sentia-se afogueada; foi cobrir-se de pó-de-arroz. Se Basílio estivesse doente! E num quarto de hotel! Só, com criados desleixados! Mas não, ter-lhe-ia escrito nesse caso!... Não viera, não se importara! Que grosseiro, que egoísta!

Era bem tola em se afligir. Melhor! Mas, abafava-se, positivamente! Foi um leque, e as suas mãos enraivecidas sacudiram num frenesi a gaveta, ao se abriu logo, um pouco perra. Pois bem, não o tornaria a receber!

E o seu grande amor, de repente, como um fumo que uma rajada dissipa, desapareceu! Sentiu um alivio, um grande desejo de tranqüilidade. Era absurdo, realmente, com um marido como Jorge, pensar noutro homem, um leviano, um estróina!...

Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação, correu ao escritório de uma folha de papel, escreveu à pressa:

Querido Basílio.

Por que não vens? Estás doente? Se soubesse os tormentos por que me fazes passar...

A campainha retiniu. Era ele! Amarrotou o bilhete, meteu-o no bolso do ficou esperando, palpitante. Passos de homem pisaram no tapete da sala. Entrou com o olhar faiscante... Era Sebastião, um pouco pálido, que lhe apertou muito as mãos. Estava melhor? Tinha dormido bem?

Sim, obrigada, estava melhor. Sentara-se no sofá, muito vermelha. Mal sabia o que dizer.

Repetiu com um sorriso vago:

— Estou muito melhor! - E pensava: - "Não me deixa agora a casa, este maçador!"

— Então, não saiu? - perguntou Sebastião, sentado na poltrona, com o chapéu desabado nas mãos.

Não, estava um pouco fatigada ainda.

Sebastião passou devagar a mão pelos cabelos, e com uma voz que o embaraço engrossava:

— Também agora tem sempre companhia pela manhã...

— Sim, meu primo Basílio tem aparecido. Há tanto tempo que nos não víamos! Fomos criados de pequenos, quase... Tenho-o visto quase todos os dias.

Sebastião fez logo rolar um pouco a poltrona, e curvando-se, baixando a voz:

— Eu mesmo tinha vindo para lhe falar a esse respeito...

Luísa abriu um olhar surpreendido.

— A respeito de quê?

— É que se repara... A vizinhança é a pior coisa que há, minha rica amiga. Repara em tudo. Já se tem falado. A criada do lente, o Paula. Até já vieram à tia Joana. E como o Jorge não está... O Neto também reparou. Como não sabem o parentesco... E como vem todos os dias...

Luísa ergueu-se bruscamente, com o rosto alterado:

— Então eu não posso receber os meus parentes sem ser insultada? - exclamou.

Sebastião levantou-se também. Aquela cólera súbita nela, uma pessoa tão doce, atarantou-o como um trovão que estala num céu claro de verão.

Pôs-se a dizer, quase ansiosamente:

— Oh, minha rica senhora! Mas repare, eu não digo... É por causa da vizinhança!...

— Mas que pode dizer a vizinhança?

A sua voz tinha uma vibração aguda. E batendo com as mãos, apertando-as, exaltada:

— Isto é curioso! Tenho um parente único, com quem fui criada, que não vejo há uns poucos de anos, vem-me fazer três ou quatro visitas, está um momento, e já querem deitar maldade!

Falava convencida, esquecendo as palavras de Basílio, os beijos, o cupê...

Sebastião, acabrunhado, enrolava o chapéu nas mãos trêmulas. E com uma voz abafada:

— Eu, tinha-me parecido prudente avisar; o Julião também...

— O Julião? - exclamou ela. - Mas que tem o Julião com isso? Com que direito se metem no que se passa em minha casa? O Julião!

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