O Primo Basílio (7 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto anelado havia agora alguns fios brancos; mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos quando ria, a mesma doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!

— Mas tu, conta-me de ti! - dizia ele com um sorriso, inclinado para ela. - És feliz, tens um pequerrucho...

— Não - exclamou Luísa rindo. - Não tenho! Quem te disse?

— Tinham-me dito. E teu marido demora-se?

— Três, quatro semanas, creio.

Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes, palrar um momento, pela manhã...

— Pudera não! És o único parente que tenho agora...

Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade melancólica; falaram da mãe de Luísa, a "tia Jojó", como lhe chamava Basílio. Luísa contou a sua morte muito doce, na poltrona, sem um ai...

Onde está sepultada? - perguntou Basílio com uma voz grave; e acrescentou puxando o punho da camisa de chita: - Está no nosso jazigo?

— Está.

— Hei de ir lá. Pobre tia Jojó!

Houve um silêncio.

— Mas tu ias sair! - disse Basílio de repente, querendo erguer-se.

— Não! - exclamou. - Não! Estava aborrecida, não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já.

Ele ainda disse:

— Não te prendas...

— Que tolice! Ia à casa de uma amiga passar um momento.

Tirou logo o chapéu; naquele movimento, os braços erguidos repuxaram o colete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente.

Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçar as luvas:

— Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu...

Ela riu-se.

— Decerto que não...

Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:

— Ah! Outros tempos!

E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira idéia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipóia e ir lá; queria ir ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? Ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...

Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro; sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.

— A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! - disse Basílio; e fitando-a: - Lembraste das nossas partidas de bilhar?

Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele; disse sorrindo:

— Éramos duas crianças!

Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete; parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:

— Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!

Ela via a sua cabeça bem feita, descaída naquela melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos - que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.

Fora sempre o seu desejo viajar - dizia -,ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...

— Estás muito valente! - disse Basílio. - Tu eras uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!

Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali ás vezes, pelos cantos, beijos furtados...

Quis saber então o que tinha feito em Jerusalém; se era bonito.

Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo Sepulcro; depois do almoço montava a cavalo... Não se estava mal no hotel; inglesas bonitas... Tinha algumas intimidades ilustres...

Falava delas, devagar, traçando a perna; o seu amigo, o patriarca de Jerusalém, a sua velha amiga, a Princesa de La Tour d'Auvergne! Mas o melhor do dia era de tarde - dizia - no Jardim das Oliveiras, vendo defronte as muralhas do Templo de Salomão, ao pé a aldeia escura de Betânia onde Marta fiava aos pés de Jesus, e mais longe, faiscando imóvel sob o sol, o Mar Morto! E ali passava sentado num banco, fumando tranqüilamente o seu cachimbo!

Se tinha corrido perigos?

Decerto. Uma tempestade de areia no deserto de Petra! Horrível! Mas que linda viagem, as caravanas, os acampamentos! Descreveu a sua toalete, uma manta de pele de camelo às listras vermelhas e pretas, um punhal de Damasco numa cinta de Bagdá, e a lança comprida dos beduínos.

— Devia-te ficar bem!

— Muito bem. Tenho fotografias.

Prometeu dar-lhe uma, e acrescentou:

— Sabes que te trago presentes?

— Trazes? - E os seus olhos brilhavam.

O melhor era um rosário...

— Um rosário?

— Uma relíquia! Foi benzido primeiro pelo patriarca de Jerusalém sobre o túmulo de Cristo, depois pelo papa...

Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito asseado, já todo branquinho, vestido de branco, muito amável!

— Tu dantes não eras muito devota - disse.

— Não, não sou muito caturra nessas coisas - respondeu rindo.

— Lembras-te da capela da nossa casa em Almada?

Tinham passado ali lindas tardes! Ao pé da velha capela morgada havia um adro todo cheio de altas ervas floridas - e as papoulas, quando vinha a aragem, agitavam-se como asas vermelhas de borboletas pousadas...

— E a tília, lembras-te, onde eu fazia ginástica?

— Não falemos no que lá vai!

Em que queria ela então que ele falasse? Era a sua mocidade, o melhor que tivera na vida...

Ela sorriu, perguntou:

— E no Brasil?

Um horror! Até fizera a corte a uma mulata.

— E por que te não casaste?... Estava a mangar! Uma mulata!

— E de resto - acrescentou com a voz de um arrependimento triste -, já que me não casei quando devia - encolheu os ombros melancolicamente -, acabou-se... Perdi a vez. Ficarei solteiro.

Luísa fez-se escarlate. Houve um silêncio.

— E qual é o outro presente, então, além do rosário?

— Ah! Luvas. Luvas de verão, de peau de suede, de oito botões. Luvas decentes. Vocês aqui usam umas luvitas de dois botões, a ver-se o punho, um horror!

De resto pelo que tinha visto, as mulheres em Lisboa cada dia se vestiam pior! Era atroz! Não dizia por ela; até aquele vestido tinha chique, era simples, era honesto. Mas em geral era um horror. Em Paris! Que deliciosas, que frescas as toaletes daquele verão! Oh! Mas em Paris!... Tudo é superior! Por exemplo, desde que chegara ainda não pudera comer. Positivamente não podia comer! - Só em Paris se come - resumiu.

Luísa voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de veludo preto.

— E estiveste então um ano em Paris?

Um ano divino. Tinha um apartamento lindíssimo, que pertencera a Lord Flamouth, Rue Saint Florentin; tinha três cavalos...

E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:

— Enfim, fazer este vale de lágrimas o mais confortável possível!... Dize cá, tens algum retrato nesse medalhão?

— O retrato de meu marido.

— Ah! Deixa ver!

Luísa abriu o medalhão. Ele debruçou-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela. Luísa sentia o aroma fino que vinha de seus cabelos.

— Muito bem, muito bem! - fez Basílio.

Ficaram calados.

— Que calor que está! - disse Luísa. - Abafa-se, bem!

Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O sol deixara a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambinelas.

— É o calor do Brasil - disse ele. - Sabes que estás mais crescida?

Luísa estava de pé. O olhar de Basílio corria-lhe as linhas do corpo; e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os joelhos, o rosto erguido para ela:

— Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria ver?

— Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. Es o meu único parente... O que tenho pena é que meu marido não esteja...

— Eu - acudiu Basílio - foi justamente por ele não estar...

Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou logo, um pouco corado também:

— Quero dizer... talvez ele saiba que houve entre nós...

Ela interrompeu:

— Tolices! Éramos duas crianças. Onde isso vai!

— Eu tinha vinte e sete anos - observou ele, curvando-se.

Ficaram calados, um pouco embaraçados. Basílio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.

— Estás muito bem instalada aqui - disse.

Não estava mal... A casa era pequena, mas muito cômoda. Pertencia-lhes.

— Ah! Estás perfeitamente! Quem é esta senhora, com uma luneta de ouro?

E indicava o retrato por cima do sofá.

— A mãe de meu marido.

— Ah! Vive ainda?

— Morreu.

— É o que uma sogra pode fazer de mais amável...

Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o chapéu.

— Já? Onde estás?

— No Hotel Central. E até quando?

— Até quando quiseres. Não disseste que vinhas amanhã com o rosário?

Ele tomou-lhe a mão, curvou-se:

— Já se não pode dar um beijo na mão de uma velha prima?

— Por que não?

Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com uma pressão doce.

— Adeus! - disse.

E à porta com o reposteiro meio erguido, voltando-se:

— Sabes, que eu, ao subir as escadas, vinha a perguntar a mim mesmo, como se vai isto passar?

— Isto quê? Vermo-nos outra vez? Mas, perfeitamente. Que imaginaste tu?

Ele hesitou, sorriu:

— Imaginei que não eras tão boa rapariga. Adeus. Amanhã, hem?

No fundo da escada acendeu o charuto, devagar.

— "Que bonita que ela está!" - pensou.

E arremessando o fósforo, com força:

— "E eu, pedaço de asno, que estava quase decidido a não a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha em casa; aborrecidinha talvez!..."

Ao pé da Patriarcal fez parar um cupé vazio; e estendido, com o chapéu nos joelhos, enquanto a parelha esfalfada trotava:

— "E tem-me o ar de ser muito asseada, coisa rara na terra! As mãos muito bem tratadas! O pé muito bonito!"

Revia a pequenez do pé, pôs-se a fazer por ele o desenho mental de outras belezas, despindo-a, querendo adivinhá-la... A amante que deixara em Paris era alta e magra, de uma elegância de tísica; quando se decotava viam-se as saliências das suas primeiras costelas. E as formas redondinhas de Luísa decidiram-no:

— A ela! - exclamou com apetite. - A ela, como São Tiago, aos mouros!

Luísa, quando o sentiu embaixo fechar a porta da rua, entrou no quarto, atirou o chapéu para a causeuse, e foi-se logo ver ao espelho. Que felicidade estar vestida! Se ele a tivesse apanhado em roupão, ou malpenteada!... Achou-se muito afogueada, cobriu-se de pó-de-arroz. Foi à janela, olhou um momento a rua, o sol que batia ainda nas casas fronteiras. Sentia-se cansada. Aquelas horas Leopoldina estava a jantar já, decerto... Pensou em escrever a Jorge "para matar o tempo", mas veio-lhe uma preguiça; estava tanto calor! Depois não tinha que lhe dizer! Começou então a despir-se devagar diante do espelho, olhando-se muito, gostando de se ver branca, acariciando a finura da pele, com bocejos lânguidos de um cansaço feliz. - Havia sete anos que não via o primo Basílio! Estava mais trigueiro, mais queimado; mas ia-lhe bem!

E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire, com um livro esquecido no regaço. O vento caíra e o ar, de um azul forte nas alturas, estava imóvel; a poeira grossa pousara; a tarde tinha uma transparência calma de luz; pássaros chilreavam na figueira brava; da serralharia próxima saia o martelar continuo e sonoro de folhas de ferro. Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente, laivos de cor de laranja desmaiada esbateram-se como grandes pinceladas desleixadas. Depois tudo se cobriu de uma sombra difusa, calada e quente, com uma estrelinha muito viva que luzia e tremia. E Luísa deixara-se ficar na voltaire esquecida, absorvida, sem pedir luz.

— "Que vida interessante a do primo Basílio!" - pensava. - "O que ele tinha visto!" Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances - a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!

Como seria o patriarca de Jerusalém? Imaginava-o de longas barbas brancas, recamado de ouro, entre instrumentações solenes e rolos de incenso! E a Princesa de La Tour d'Auvergne? Devia ser bela, de uma estatura real, vivia cercada de pajens, namorara-se de Basílio. - A noite escurecia, outras estrelas luziam. - Mas de que servia viajar, enjoar nos paquetes, bocejar nos vagões, e, numa diligência muito sacudida, cabecear de sono pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver num bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colchões macios, uma noite de teatro às vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando os canários chalram? Era o que ela tinha. Era bem feliz. Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraçá-lo, tê-lo ali, ou descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo no escritório, com o seu de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentária e caturra; mas a profissão de Jorge era interessante; descia aos tenebrosos das minas; um dia aperrara as pistolas contra uma malta revoltada; era valente; tinha talento! Involuntariamente, porém, o primo Basílio fazendo flutuar o seu bornous branco pelas planícies da Terra Santa, ou em Paris, direito na almofada, governando tranqüilamente os seus cavalos inquietos - davam-lhe a idéia de uma outra existência mais poética, mais própria para os episódios do sentimento.

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