Authors: Eça de Queirós
— "Ficou derreada".
Luísa que nunca tomava café, quis nessa tarde "meia chávena, mas forte, muito forte".
— Quer café! - veio ela dizer à cozinheira, toda excitada. - Tudo à grande. E do forte. Quer do forte! Ora o diabo!
Estava furiosa.
— Todas o mesmo! Uma récua de cabras!
Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo, quando Juliana ia para a missa, Luísa chamou-a da porta do quarto, deu-lhe uma carta para levar a D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado; - e a curiosidade de Juliana acendeu-se logo diante daquele sobrescrito fechado e lacrado com o sinete de Luísa, um L gótico dentro de uma coroa de rosas.
— Tem resposta?
— Tem.
Quando voltou às dez horas, com um bilhete de D. Felicidade, Luísa quis saber se havia muito calor, se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéu de palha escuro, que ela estivera a enfeitar com duas rosas de musgo.
Fazia um bocadinho de vento, mas para a tarde abrandava, decerto. E pensou logo: -"Temos passeata, vai ter com o gajo!"
Mas durante todo o dia, Luísa em roupão não saiu do seu quarto ou da sala, ora estendida na causeuse lendo aos bocados, ora batendo distraidamente no piano pedaços de valsas. Jantou às quatro horas. A cozinheira saiu, e Juliana pôs-se a passar a sua tarde à janela da sala de jantar. Tinha o vestido novo, as saias muito rijas de goma, a cuia dos dias santos - e pousava solenemente os cotovelos num lenço, estendido sobre o peitoril da varanda. Defronte os pássaros chilreavam na figueira brava. Dos dois lados do tabique que cercava o terreno vago, agachavam-se os tetos escuros das duas ruazitas paralelas; eram casas pobres onde viviam mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibaldi, os cabelos muito oleosos, faziam meia à janela, falando aos homens, cantarolando com um tédio triste. Do outro lado do terreno, verduras de quintais, muros brancos davam àquele sítio um ar adormecido de vila pacata. Quase ninguém passava. Havia um silêncio fatigado; e só às vezes o som distante de um realejo, que tocava a Norma ou a Lúcia, punha uma melancolia na tarde. - E Juliana ali estava imóvel até que os tons quentes da tarde empalideciam, e os morcegos começavam a voar.
Pelas oito horas entrou no quarto de Luísa - ficou pasmada de a ver vestida toda de preto, de chapéu! Tinha acendido as serpentinas na parede, os castiçais no toucador; e sentada à beira da causeuse calçava as luvas devagar, com a face muito séria, um pouco esbatida de pó-de-arroz, o olhar cheio de brilho.
— O vento abrandou? - disse.
— Está a noite muito bonita, minha senhora.
Um pouco antes das nove horas uma carruagem parou à porta. Era D. Felicidade, muito encalmada. Abafara todo o dia! E à noite nem uma aragem! Até tinha mandado buscar uma carruagem descoberta, que num cupê, credo, morria-se.
Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa. Onde iriam? Onde iriam? D. Felicidade, amplamente sentada, de chapéu, tagarelava; uma indigestão que tivera na véspera com umas vagens; a cozinheira que a tinha querido comer em quatro vinténs; uma visita que lhe fizera a Condessa de Arruela...
Enfim, Luísa, disse, baixando o seu véu branco:
— Vamos, filha. Faz-se tarde.
Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que propósito, irem duas mulheres sós por aí fora, numa tipóia! E se uma criada então se demorava na rua mais meia hora, credo, que alarido! Que duas bêbedas!
Foi à cozinha desabafar com a Joana. Mas a rapariga, estirada numa cadeira, dormitava.
Fora com o seu Pedro ao Alto de São João. E toda a tarde tinham passeado no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios, beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam, e regalando-se do ar dos e das relvas dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram a um quartilho no Espregueira... Tarde cheia! E estava derreada da soalheira, do pó, da admiração de tanto túmulo rico, do homem, e da pinguita d'vinho.
O que ia, era refestelar-se para a cama!
— Credo, Sra. Joana, vossemecê está-se a fazer uma dorminhoca! Olha que mulher! Com pouco arreia! Cruzes!
Desceu ao quarto de Luísa, apagou as luzes, abriu as janelas, arrastou a poltrona para a varanda - e, repimpada, os braços cruzados, pôs-se a passar a noite.
O estanque ainda não se fechara, e a sua luzita lúgubre como a estanqueira, estendia-se tristemente sobre a pedra miúda da rua; as janelas ao pé estavam abertas, por algumas, mal-alumiadas, viam-se dentro serões melancólicos; noutras, vultos imóveis, luzia às vezes a ponta de um cigarro; aqui, além tossia-se do padeiro; e o moço do padeiro, no silêncio quente da noite, harpejava baixinho a guitarra.
Juliana pusera um vestido de chita claro; dois sujeitos que estavam à porta riam, erguiam de vez em quando os olhos para a janela, para aquele de mulher: Juliana, então, gozou! Tomavam-na decerto pela senhora, pela do Engenheiro; faziam-lhe olho, diziam brejeirices... Um tinha calça branca e chapéu alto, eram janotas... E com os pés muito estendidos, os braços cruzados, de lado, saboreava, longamente, aquela consideração.
Passos fortes que subiam a rua, pararam à porta; a campainha retiniu de leve
— Quem é? - perguntou muito impaciente.
— Está? - disse a voz grossa de Sebastião.
— Saiu com a D. Felicidade; foram de carruagem.
— Ah! - fez ele.
E acrescentou:
— Muito bonita noite!
— De apetite, Sr. Sebastião! De apetite! - exclamou alto.
E quando o viu descer a rua, gritou, afetadamente:
— Recados a Joana! Não se esqueça! - mostrando-se íntima, madama, com olho terno para os homens.
Aquela hora D. Felicidade e Luísa chegavam ao Passeio.
Era benefício; já de fora se sentia o bruaá lento e monótono, e via-se uma névoa alta de poeira, amarelada e luminosa.
Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram Basílio. Fez-se muito surpreendido, exclamou:
— Que feliz acaso!
Luísa corou; apresentou-o a D. Felicidade.
A excelente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se dele, mas se não lhe dissessem talvez o não conhecesse! Estava muito mudado!
— Os trabalhos, minha senhora... - disse Basílio curvando-se. E acrescentou rindo, batendo com a bengala na pedra do tanque:
— E a velhice! Sobretudo a velhice!
Na água escura e suja as luzes do gás torciam-se até uma grande profundidade. As folhagens em redor estavam imóveis, no ar parado, com tons de um verde lívido e artificial. Entre os dois longos renques paralelos de árvores mesquinhas, entremeadas de candeeiros de gás, apertava-se, num empoeiramento de macadame, uma multidão compacta e escura; e através do rumor grosso, as saliências metálicas da música faziam passar no ar pesado, compassos vivos de valsa.
Tinham ficado parados, conversando.
— Que calor, hem? Mas a noite estava linda! Nem uma aragem! Que enchente!
E olhavam a gente que entrava: moços muito frisados, com calças cor de flor de alecrim, fumando cerimoniosamente os charutos do dia santo; um aspirante com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado; duas meninas de cabelo riçado, de movimentos gingados que lhe desenhavam os ossos das omoplatas sob a fazenda do vestido atabalhoado; um eclesiástico cor de cidra, o ar mole, o cigarro na boca, e lunetas defumadas; uma espanhola com dois metros de saia branca muito rija, fazendo ruge-ruge na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão e bengalão, de chapéu na nuca, o olho avinhado; e Basílio ria muito de dois pequenos que o pai conduzia com um ar hilare e compenetrado - vestidos de azul-claro, a cinta ligada numa faixa escarlate, barretinas de lanceiros, botas à húngara, cretinos e sonâmbulos.
Um sujeito alto então passou rente deles, e voltando-se, revirou para Luísa dois grandes olhos langorosos e prateados; tinha uma pêra longa e aguçada; trazia o colete decotado mostrando um belo peitilho, e fumava por uma boquilha enorme que representava um zuavo.
Luísa quis-se sentar.
Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu a arranjar cadeiras; e acomodaram-se ao pé de uma família acabrunhada e taciturna.
— Que fizeste tu hoje, Basílio? - perguntou Luísa.
Tinha ido aos touros.
— E que tal? Gostaste?
— Uma sensaboria. Se não fosse pelo trambolhão do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado fraco, cavaleiros infelizes, nenhuma sorte! Touros em Espanha! Isso sim!
D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas à tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O sangue, as tripas dos cavalos... "Puh! E muito cruel!"
Basílio disse, com um sorriso:
— Que faria se visse os combates de galos, minha senhora!
D. Felicidade tinha ouvido contar - mas achava todos esses divertimentos bárbaros, contra a Religião.
E recordando um gozo que lhe punha um riso na face gorda:
— Para mim não há nada como uma boa noite de teatro! Nada!
— Mas aqui representam tão mal! - replicou Basílio com uma voz desolada. - Tão mal, minha rica senhora!
D. Felicidade não respondeu; meio erguida na cadeira, o olhar avivado de um brilho úmido, saudava desesperadamente com a mão:
— Não me viu - disse desconsolada.
— Era o Conselheiro? - perguntou Luísa.
— Não. Era a Condessa de Alviela. Não me viu! Vai muito à Encarnação, sou muito dela. É um anjo! Não me viu. Ia com o sogro.
Basílio não tirava os olhos de Luísa. Sob o véu branco, à luz falsa do gás, no ar enevoado da poeira, o seu rosto tinha uma forma alva e suave, onde os olhos que a noite escurecia punham uma expressão apaixonada; os cabelinhos louros, frisados tornando a testa mais pequena, davam-lhe uma graça ameninada e amorosa; e as luvas gris perle faziam destacar sobre o vestido negro o desenho elegante das mãos, que ela pousara no regaço, sustentando o leque, com uma fofa renda branca em torno dos seus pulsos finos.
— E tu, que fizeste hoje? - perguntou-lhe Basílio.
Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo dia a ler.
Também ele passara a manhã deitado no sofá a ler a Mulher de Fogo de Belot. Tinha lido, ela?
— Não, que é?
— É um romance, uma novidade.
E acrescentou sorrindo:
— Talvez um pouco picante; não to aconselho!
D. Felicidade andava a ler o Rocambole. Tanto lho tinham apregoado! Mas era uma tal trapalhada! Embrulhava-se, esquecia-se... E ia deixar, porque tinha percebido que a leitura lhe aumentava a indigestão.
— Sofre? - perguntou Basílio, com um interesse bem-educado.
D. Felicidade contou logo a sua dispepsia. Basílio aconselhou-lhe o uso do gelo. - De resto felicitava-a, porque as doenças de estômago, ultimamente, tinham muito chique. Interessou-se pela dela, pediu pormenores.
D. Felicidade prodigalizou-os; e falando, via-se-lhe crescer no olhar, na voz a sua simpatia por Basílio. Havia de usar o gelo!
— Com o vinho, já se sabe?
— Com o vinho, minha senhora!
— E olha que talvez! - exclamou D. Felicidade, batendo com o leque no braço de Luísa, já esperançada.
Luísa sorriu, ia responder - mas viu o sujeito pálido de pêra longa que fitava nela os seus olhos langorosos, com obstinação. Voltou o rosto importunada. O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da pêra.
Luísa sentia-se mole; o movimento rumoroso e monótono, a noite cálida, a acumulação da gente, a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo de mulher caseira um torpor agradável, um bem-estar de inércia, envolviam-na numa doçura emoliente de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o olhar frouxo; quase tinha preguiça de mexer as mãos, de abrir o leque.
Basílio notou o silêncio. - Tinha sono?
D. Felicidade sorriu com finura.
— Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que o não tem está esta mona que se vê.
Luísa respondeu, olhando Basílio instintivamente:
— Que tolice! Até estes dias tenho andado bem alegre!
Mas D. Felicidade insistia:
— Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãozinho está no Alentejo!
Luísa disse, com impaciência:
— Não hás de querer que me ponha aos pulos e às gargalhadas no Passeio.
— Está bem, não te enfureças! - exclamou D. Felicidade. E para Basílio:
— Que geniozinho, hem!
Basílio pôs-se a rir.
— A prima Luísa antigamente era uma víbora. Agora não sei...
D. Felicidade acudiu:
— É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não, lá isso, é uma pomba.
E envolvia-a num olhar maternal.
Mas a família taciturna ergueu-se, sem ruído - e as meninas adiante, os pais atrás, afastaram-se lugubremente, sucumbidos.
Basílio imediatamente apossou-se da cadeira ao pé de Luísa - e vendo D. Felicidade a olhar distraída:
— Estive para te ir ver de manhã - disse baixinho a Luísa.
Ela ergueu a voz, muito naturalmente, com indiferença:
— E por que não foste? Tínhamos feito música. Fizeste mal. Devias ter ido...
D. Felicidade quis então saber as horas. Começava a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o Conselheiro; por ele, para lhe parecer bem, fizera o sacrifício de se apertar! Acácio não vinha, os gases começavam a afrontá-la; e o despeito daquela ausência aumentava-lhe a tortura da digestão. Na sua cadeira, o corpo mole, ia seguindo a multidão que girava incessantemente, numa névoa empoeirada.
Mas a música, no coreto, bateu de repente, alto, a grande ruído de cobres, os primeiros compassos impulsivos da marcha do Fausto. Aquilo reanimou-a.
Era pot-pourri da ópera - e não havia música de que gostasse mais. Estaria para a abertura de São Carlos, o Sr. Basílio?
Basílio disse, com uma intenção, voltando-se para Luísa:
— Não sei, minha senhora, depende...
Luísa olhava, calada. A multidão crescera. Nas ruas laterais mais espaçosas, frescas, passeavam apenas, sob a penumbra das árvores, os acanhados, as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado. Toda a burguesia domingueira viera amontoar-se na rua do meio, no corredor formado pelas filas cerradas das cadeiras do asilo; e ali se movia entalada, com a lentidão espessa de uma massa derretida, arrastando os pés, raspando o macadame, num amarfanhamento a garganta seca, os braços moles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente para cima e para baixo, com um bamboleamento relaxado e um rumor grosso sem alegria e sem bonomia, no arrebanhamento passivo que agrada às raças mandrionas; no meio da abundância das luzes e das festividades da música, um tédio morno circulava, penetrava como uma névoa; a poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom neutro; e nos rostos que passavam sob os candeeiros, nas zonas mais diretas de luz, viam-se desconsolações de fadiga e aborrecimento de dia santo.