O Primo Basílio (13 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Tinha dito, com efeito, que voltava. Mas começava quase a envergonhar-se de vir assim todos os dias, e encontrá-la sempre "com uma visita!"

Logo no primeiro dia ficara muito surpreendido quando Juliana lhe disse:

— Um sujeito! Um rapaz novo que já cá esteve ontem!" Quem seria? todos os amigos da casa... Seria algum empregado da secretaria ou algum proprietário de minas, o filho do Alonso, talvez; um negócio de Jorge decerto...

Depois no domingo, à noite, trazia-lhe a partitura de Romeu e Julieta, de Gounod, que ela desejava tanto ouvir, e quando Juliana lhe disse da varanda que tinha saído com D. Felicidade de carruagem, ficou muito embaraçado com o grosso volume debaixo do braço, coçando devagar a barba. Onde teriam ido? Lembrou-se do entusiasmo de D. Felicidade pelo Teatro de D. Maria. Mas irem sós, naquele calor de julho, ao teatro! Enfim, era possível. Foi a D. Maria.

O teatro, quase vazio, estava lúgubre; aqui e além, nalgum camarote, uma família feia perfilava-se, com cabelos negríssimos carregados de postiços, gozando soturnamente a sua noite de domingo; na platéia, à larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas e inexpressivas escutavam com um ar encalmado e farto, limpando a espaços, com lenços de seda, o suor dos pescoços; na geral, gente de trabalho arregalava olhos negros em faces trigueiras e oleosas; a luz tinha um tom dormente; bocejava-se. E no palco, que representava uma sala de baile amarela, um velhote condecorado falava a uma magrita de cabelos riçados, sem cessar, com o tom diluído de uma água gordurosa e morna que escorre.

Sebastião saiu. Onde estariam? Soube-se na manhã seguinte.- Descia o Moinho de Vento, e um vizinho, o Neto, que subia curvado sob o seu guarda-sol, com o cigarro ao canto do bigode grisalho, deteve-o bruscamente, para lhe dizer:

— Ó amigo Sebastião, ouça cá. Vi ontem à noite no Passeio a D. Luísa com um rapaz que eu conheço. Mas de onde conheço eu aquela cara? Quem diabo é?

Sebastião encolheu os ombros.

— Um rapaz alto, bonito, com um ar estrangeirado. Eu conheço-o. Noutro dia vi-o entrar para lá. Você não sabe?

Não sabia.

— Eu conheço aquela cara. Tenho estado a ver se me recordo... Passava a mão pela testa. - Eu conheço aquela cara! Ele é de Lisboa. De Lisboa é ele!

E depois de um silêncio, fazendo girar o guarda-sol:

— E que há de novo, Sebastião?

Também não sabia. Nem eu!

E bocejando muito:

— Isto está uma pasmaceira, homem!

Nessa tarde, às quatro horas, Sebastião voltou à casa de Luísa. Estava com "o sujeito!" Ficou então preocupado. Decerto era algum negócio de Jorge; porque não compreendia que ela falasse, sentisse, vivesse, que não fosse no interesse da casa e para maior felicidade de Jorge. Mas devia ser grave então - para reclamar visitas, encontros, tantas relações. Tinham pois interesses importantes que ele não conhecia! E aquilo parecia-lhe uma ingratidão, e como uma diminuição de amizade.

A tia Joana tinha-o achado "macambúzio".

Foi ao outro dia que soube que o sujeito era o primo Basílio, o Basílio de Brito. O seu vago desgosto dissipou-se, mas um receio mais definido veio inquietá-lo Sebastião não conhecia Basílio pessoalmente, mas sabia a crônica da sua mocidade. Não havia nela certamente, nem escândalo excepcional, nem romance pungente. Basílio tinha sido apenas um pândego e, como tal, passara metodicamente por todos os episódios clássicos da estroinice lisboeta: - partidas de monte até de madrugada com ricaços do Alentejo; uma tipóia despedaçada num sábado de touros; ceias repetidas com alguma velha Lola e uma antiga salada de lagosta; algumas pegas aplaudidas em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de Colares nas tabernas fadistas; muita guitarra; socos bem jogados à face atônita de um polícia; e uma profusão de gemas de ovos nas glórias do Entrudo. As únicas mulheres mesmo que apareciam na sua história, além das Lolas e das Carmens usuais, eram a PisteIli, uma dançarina alemã cujas pernas tinham uma musculatura de atleta, e a Condessinha de Alvim, uma doida, grande cavaleira, que se separara de seu marido depois de o ter chicotado, e que se vestia de homem para bater ela mesma em trem de praça do Rossio ao Dafundo. Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios. E este homem agora vinha ver a Luisinha todos os

dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...

Para quê?... Era claro, para a desinquietar!

Ia justamente descendo a rua, dobrado sob a pesada desconsolação destas idéias quando uma voz encatarroada disse com respeito:

— Ó Sr. Sebastião!

Era o Paula dos móveis.

— Viva, Sr. João.

O Paula atirou para as pedras da rua um jato escuro de saliva, e com as mãos cruzadas debaixo das abas do comprido casaco de cotim, o tom grave:

— Ó Sr. Sebastião, há doença cá por casa do senhor engenheiro?

Sebastião todo surpreendido:

— Não. Por quê?

O Paula fez roncar a garganta, cuspilhou:

— É que tenho visto entrar para cá todos os dias um sujeito. Imaginei que fosse o médico.

E puxando o escarro:

— Desses novos da homeopatia!

Sebastião tinha corado.

— Nada - disse. - É o primo de D. Luísa.

— Ah! - fez o Paula. - Pois pensei... Queira desculpar, Sr. Sebastião.

E curvou-se respeitosamente.

— Já temos falatório! - foi pensando Sebastião.

E entrou em casa, descontente.

Morava ao fundo da rua, num prédio seu, de construção antiga, com quintal.

Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em inscrições, terras de lavoura para o lado de Seixal, e a quinta em Almada - o Rozegal. As duas criadas eram muito antigas na casa. A Vicência, a cozinheira, era uma preta de São Tomé já do tempo da mamã. A tia Joana, a governanta, servia-o havia trinta e cinco anos; chamava ainda a Sebastião o "menino"; tinha já as tontices de uma criança, e recebia sempre os respeitos de uma avó. Era do Porto, do Poârto, como ela dizia, porque nunca perdera o seu acento minhoto. Os amigos de Sebastião chamavam-lhe uma velha de comédia. Era baixinha e gorda, com um sorriso muito bondoso; tinha os cabelos alvos como uma estriga, atados no alto num rolinho com um antigo pente de tartaruga; trazia sempre um vasto lenço branco muito asseado, traçado sobre o peito. E todo o dia passarinhava pela casa, com o seu passinho arrastado, fazendo tilintar os molhos de chaves, resmungando provérbios, tomando rapé de uma caixa redonda, em cuja tampa se lascava o desenho abonecado da ponte pênsil do Porto.

Em toda a casa havia um tom caturra e doce; na sala de visitas, quase sempre fechada, o vasto canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do tempo do senhor D. José I, e os estofos de damasco vermelho desbotado lembravam a pompa de uma corte decrépita; das paredes da casa de jantar pendiam as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde se vê invariavelmente, numa eminência, o cavalo branco, para o qual galopa desenfreadamente do primeiro plano um hussardo, brandindo um sabre. Sebastião dormia os seus sonos de sete horas, sem sonhos, numa velha barra de pau preto torneado; e numa saleta escura, sobre uma cômoda de fecharias de metal amarelo, conservava-se, havia anos, o padroeiro da casa, São Sebastião - que se torcia, cravado de setas, nas cordas que o atavam ao tronco, à luz de uma lâmpada, muito cuidada pela tia Joana, sob os ruídos sutis dos ratos pelo forro.

A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um gênio antiquado. Era solitário e acanhado. Já no Latim lhe chamavam o "Peludo"; punham-lhe rabos, roubavam-lhe impudentemente as merendas. Sebastião, que tinha a força de um ginasta, oferecia a resignação de um mártir.

Foi sempre reprovado nos primeiros exames do liceu. Era inteligente, mas uma pergunta, o reluzir dos óculos de um professor, a grande lousa negra imobilizavam-no; ficava muito embezerrado, a face inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio.

Sua mãe, que era da aldeia e que fora padeira, muito vaidosa agora das suas inscrições, da sua quinta, da sua mobília de damasco, sempre vestida de seda, carregada de anéis, costumava dizer:

— Ora! Tem que comer e beber! Estar a afligir a criança com estudos! deixa lá!

A inclinação de Sebastião era pela música. Sua mãe, por conselhos da mãe de Jorge, sua vizinha e sua íntima, tomou-lhe um mestre de piano; logo desde as primeiras lições, a que ela assistia com enfeites de veludo vermelho e cheia de jóias, o velho professor Aquiles Bentes, de óculos redondos e cara de coruja, excitado com a sua voz nasal:

— Minha rica senhora! O seu menino é um gênio! É um gênio! Há de ser um Rossini! É puxar por ele! É puxar por ele!

Mas era justamente o que ela não queria, era puxar por ele, coitadinho! Por isso não foi um Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a dizer, por hábito:

— Há de ser um Rossini! Há de ser um Rossini!

Somente em lugar de o gritar, brandindo papéis de música, murmurava-o, os enormes de leão enfastiado.

Já então os dois rapazes vizinhos, Jorge e Sebastião, eram íntimos. Jorge mais inventivo, dominava-o. No quintal, a brincar, Sebastião era sempre nas imitações da diligência, o vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava os pesos, que oferecia o dorso para Jorge trepar; nas merendas comia igual, deixava a Jorge toda a fruta. Cresceram. E aquela amizade sempre amuos, tornou-se na vida de ambos um interesse essencial e permanente.

Quando a mãe de Jorge morreu, pensaram mesmo em viver juntos; habitariam a casa de Sebastião, mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar um cavalo, mas conheceu Luísa no Passeio, e daí a dois meses passava quase todo o seu dia na Rua da Madalena.

Todo aquele plano jovial da Sociedade Sebastião e Jorge - chamavam-lhe assim, rindo - desabou, como um castelo de cartas. Sebastião teve um grande pesar.

E era ele, depois, que fornecia os ramos de rosas que Jorge levava a Luísa, sem espinhos, com cuidados devotos, embrulhados num papel de seda. Era ele que tratava dos arranjos do "ninho", ia apressar os estofadores, discutir preços de roupas, vigiar o trabalho dos homens que pregavam os tapetes, conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papéis do casamento!

E à noite, fatigado como um procurador zeloso, tinha ainda de escutar com as expansões felizes de Jorge, que passeava pelo quarto até ás duas horas da noite, em mangas de camisa, namorado, loquaz, brandindo o cachimbo!

Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito só. Foi a Portel visitar um Velho esquisito, com um olhar de doido, que passava a existência combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o Eurico. Quando voltou, passado um mês, Jorge disse-lhe radioso:

— E sabes, hem? Isto agora é que é a tua casa! Aqui é que tu vives!

Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua casa com uma inteira intimidade. Sebastião batia à porta, timidamente. Corava diante de Luísa; o antigo "Peludo" de Latim reaparecia. Jorge lutara para que ele cruzasse sem cerimônia as pernas, fumasse cachimbo diante dela, não lhe dissesse a todo o momento: - "Vossa Excelência" - meio erguido na cadeira.

Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge não estava, as suas visitas eram curtas, cheias de silêncio. Julgava-se gebo, tinha medo de maçar.

Nessa tarde, quando ele foi para a sala de jantar, a tia Joana veio-lhe perguntar pela Luisinha.

Adorava-a, achava-a um anjinho, uma açucena.

— Como está ela? Viu-a?

Sebastião corou; não quis dizer, como na véspera, que estava gente, que não tinha entrado; e abaixando-se, pondo-se a brincar com as orelhas do Trajano, o seu velho perdigueiro:

— Está boa, tia Joana, está boa. Então como há de estar? Está ótima!

Àquela hora Luísa recebia uma carta de Jorge. Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor, sobre as más estalagens, histórias sobre o extraordinário parente de Sebastião - saudades e mil beijos...

Não a esperava, e aquela folha de papel cheia de uma letra miudinha, que lhe fazia reaparecer vivamente Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura, deu-lhe uma sensação quase dolorosa. Toda a vergonha dos seus desfalecimentos cobardes, sob os beijos de Basílio, veio abrasar-lhe as faces. Que horror deixar-se abraçar, apertar! No sofá o que ele lhe dissera; com que olhos a devorara!... Recordava tudo - a sua atitude, o calor das suas mãos, a tremura da sua voz... E maquinalmente, pouco e pouco, ia-se esquecendo naquelas recordações, abandonando-se-lhes, até ficar perdida na deliciosa lassidão que elas lhe davam, com o olhar lânguido, os braços frouxos. Mas a idéia de Jorge vinha então outra vez fustigá-la como uma chicotada. Erguia-se bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa, com uma vaga vontade de chorar...

— Ah! Não! É horroroso, é horroroso! - dizia só, falando alto. - E necessário acabar!

Resolveu não receber Basílio, escrever-lhe, pedir-lhe que não voltasse, que partisse! Meditava mesmo as palavras; seria seca e fria, não diria "meu querido primo", mas simplesmente "primo Basílio".

E que faria ele, quando recebesse a carta? Choraria, coitado!

Imaginava-o só, no seu quarto de hotel, infeliz e pálido; e daqui, pelos declives da sensibilidade, passava à recordação da sua pessoa, da sua voz convincente, das turbações do seu olhar dominante; e a memória demorava-se naquelas lembranças com uma sensação de felicidade, como a mão se esquece acariciando a plumagem doce de um pássaro raro. Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era! - E do fundo da sua natureza de preguiçosa vinha-lhe uma indefinida indignação contra Jorge, contra Basílio, contra os sentimentos, contra os deveres, contra tudo o que a fazia agitar-se e sofrer. Que a não secassem, Santo Deus!

Depois de jantar, à janela da sala, ficou a reler a carta de Jorge. Pôs-se a recordar de propósito tudo o que a encantava nele, do seu corpo e das suas qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de honra, outros de sentimento, para o amar, para o respeitar. Tudo era por ele estar fora, na província! Se ele ali estivesse ao pé dela! Mas tão longe, e demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra a sua vontade, a certeza daquela ausência dava-lhe uma sensação de liberdade; a idéia de se poder mover à vontade nos desejos, nas curiosidades, enchia-lhe o peito de um contentamento largo, como uma lufada de independência.

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