Authors: Eça de Queirós
— Mas que bem te fica! - tinha ela dito - que bem que te fica!
Jorge trouxera-lhe como presente seis pratos de louça da China, muito antigos, com mandarins bojudos, de túnicas esmaltadas, suspensos majestosamente no ar azulado; uma preciosidade que descobrira em casa de umas velhas miguelistas, em Mértola. Luísa dispunha-os muito decorativamente nas prateleiras guarda-louça; e em bicos de pés, com a larga cauda do seu roupão estendida por trás, a massa loura do cabelo pesado, um pouco desmanchado sobre as costas - parecia a Jorge mais esbelta, mais irresistível, e nunca a sua cinta fina lhe atraíra tanto os braços.
— A última vez que aqui almocei, antes de partir, foi um domingo, lembras-te?
— Lembro - disse Luísa sem se voltar, colocando muito delicadamente um prato.
— E é verdade - perguntou Jorge de repente - teu primo? Viste-lo? Veio ver-te?
O prato escorregou, houve um tlintlim de copos.
— Sim, veio - disse Luísa, depois de um silêncio - esteve aí umas vezes. Demorou-se pouco...
Abaixou-se, abriu o gavetão do guarda-louça, esteve a remexer nas colheres de prata; ergueu-se enfim, voltou-se com um sorriso, vermelha, sacudindo as mãos:
— Pronto!
E foi sentar-se nos joelhos de Jorge.
— Como te fica bem! - dizia, torcendo-lhe o bigode. Admirava-o, de um modo ardente. Quando se atirara aos seus braços naquela madrugada, sentira como abrir-se-lhe o coração, e um amor repentino revolver-lho deliciosamente; viera-lhe um desejo de o adorar perpetuamente, de o servir, de o apertar nos braços até lhe fazer mal, de lhe obedecer com humildade; era uma sensação múltipla, de uma doçura infinita, que a traspassara até às profundidades do seu ser. E passando-lhe um braço pelo pescoço, murmurava com um movimento de uma adulação quase lasciva:
— Estás contente? Sentes-te bom? Dize!
Nunca lhe parecera tão bonito, tão bom; a sua pessoa depois daquela separação dava-lhe as admirações, os enlevos de uma paixão nova.
— É o Sr. Sebastião - veio dizer Juliana toda risonha para Jorge.
Jorge deu um pulo, afastou Luísa bruscamente, atirou-se pelo corredor gritando:
— Aos meus braços! Aos meus braços, celerado!
Daí a dias, uma manhã que Jorge saíra para o ministério, Juliana entrou no quarto de Luísa, e fechando a porta devagarinho, com uma voz muito amável:
— Eu desejava falar à senhora numa coisa.
E começou a dizer - que o seu quarto em cima no sótão era pior que uma enxovia; que não podia lá continuar; o calor, o mau cheiro, os percevejos, a falta de ar, e no inverno a umidade, matavam-na! Enfim, desejava mudar para baixo, quarto dos baús.
O quarto dos baús tinha uma janela nas traseiras; era alto e espaçoso; guardavam-se ali os oleados de Jorge, as suas malas, os paletós velhos, e veneráveis baús do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarelos.
— Ficava ali como no céu, minha senhora!
— E... aonde se haviam de pôr os baús?
— No meu quarto, em cima. E com um risinho: - Os baús não são gente, não sofrem...
Luísa disse um pouco embaraçada:
— Bem, eu verei; eu falarei ao Sr. Jorge.
— Conto com a senhora.
Mas apenas nessa tarde Luísa explicou a Jorge "a ambição da pobre de Cristo", ele deu um salto:
— O quê? Mudar os baús? Está doida!
Luísa então insistiu: era o sonho da pobre criatura desde que viera para casa! Enterneceu-o. Não, ele não imaginava; ninguém imaginava o que era o quarto da pobre mulher! O cheiro empestava; os ratos passeavam-lhe pelo corpo, o forro estava roto, chovia dentro; fora lá há dias, e ia tombando para o lado...
— Santo Deus! Mas isso é o que minha avó contava das enxovias de Almeida! Muda-a, muda-a depressa, filha!... Porei os meus ricos baús no sótão.
Quando Juliana soube o favor:
— Ai, minha senhora, é a vida que me dá! Deus lho pague! Que eu não tinha saúde para viver num cacifo daqueles.
Ultimamente queixava-se mais; andava amarela, trazia os beiços um pouco arroxeados; tinha dias de uma tristeza negra, ou de uma irritabilidade mórbida; os pés nunca lhe aqueciam. Ah! Precisava muitos cuidados, muitos cuidados!...
Foi por isso que daí a dois dias veio pedir a Luísa, se fazia o favor de ir ao quarto dos baús. E lá, mostrando-lhe o soalho velho e carunchoso:
— Isto não pode ficar assim, minha senhora, isto precisa uma esteira senão, não vale a pena mudar. Eu se tivesse dinheiro não importunava a senhora, mas...
— Bem, bem, eu arranjarei - disse Luísa com uma voz paciente.
E pagou a esteira, sem dizer nada a Jorge. Mas na manhã em que os esteireiros a pregavam, Jorge veio perguntar atônito a Luísa o que era aquilo, rolos de esteira no corredor?"
Ela pôs-se a rir; pousou-lhe as mãos sobre os ombros:
— Foi a pobre Juliana que pediu como uma esmola a esteira, que o soalho estava podre. Até a queria pagar, e que eu lha descontasse nas soldadas. Ora por uma ridicularia... - E com um gesto compassivo: - Também são criaturas de Deus; não são escravas, filho!
— Magnífico! E que não tardem os espelhos e os bronzes! Mas que mudança foi essa, tu que a não podias ver?
— Coitada! - fez Luísa - reconheci que era boa mulher. E como estive tão só, dei-me mais com ela. Não tinha com quem falar; fez-me muita companhia. Até quando estive doente...
— Estiveste doente? - exclamou Jorge espantado.
— Oh! Três dias, só - acudiu ela - uma constipação. Pois olha que dia e noite não se tirou de ao pé de mim.
Luísa ficou com receio que Jorge falasse na doença, e Juliana desprevenida negasse, por isso, nessa tarde, ao escurecer chamou-a ao quarto:
— Eu disse ao Sr. Jorge que você me tinha feito muito boa companhia na doença... - E o seu rosto abrasava-se de vergonha.
Juliana logo, risonha, contente da cumplicidade:
— Fico entendida, minha senhora! Pode estar sossegada!
Com efeito Jorge, ao outro dia, depois do café, voltou-se para Juliana, e com bondade:
— Parece que você fez boa companhia à Sra. Luísa.
— Fiz o meu dever - exclamou, curvando-se com a mão no peito.
— Bem, bem - fez Jorge, remexendo no bolso. E ao sair da sala meteu-na mão meia libra.
— Palerma! - rosnou ela.
Foi nessa semana que começou a queixar-se à Luísa, que a roupa e os vestidos, na arca, se lhe amarfanhavam... Estava-se-lhe a estragar tudo! Se ela tivesse dinheiro, não vinha com aqueles pedidos à senhora, mas... Enfim uma manhã declarou terminantemente que precisava uma cômoda.
Luísa sentiu uma raiva acender-lhe o sangue, e sem levantar os olhos do bordado
— Uma meia cômoda?
— Se a senhora quer fazer o favor, então uma cômoda inteira...
— Mas você tem pouca roupa - disse Luísa. Começava a instalar-se na humilhação e já regateava as condescendências.
— Tenho, sim, minha senhora - replicou Juliana -, mas vou agora completar-me!
A cômoda foi comprada em segredo, e introduzida ocultamente. Que dia de felicidade para Juliana! Não se fartava de lhe saborear o cheiro da madeira nova! Passava a mão, com a tremura de uma carícia, sobre o polimento luzidio!... Forrou-lhe as gavetas de papel de seda; e começava a completar-se!
Foram semanas de amargura para Luísa.
Juliana entrava no quarto todas as manhãs, muito cumprimenteira, começava a amimar, e de repente com uma voz lamentosa:
— Ai! Estou tão falta de camisas! Se a senhora me pudesse ajudar...
Luísa ia às suas gavetas cheias, cheirosas, e começava melancolicamente a pôr à parte as peças mais usadas. Adorava a sua roupa branca; tinha tudo às dúzias, com lindas marcas, sachês para perfumar; e aquelas dádivas dilaceravam-se com mutilações! Juliana por fim já pedia com secura, com direito:
— Que bonita que esta camisinha! - dizia simplesmente. - A senhora a quer, não?
— Leve, leve! - dizia Luísa sorrindo, por orgulho, para não se mostrar violentada.
E todas as noites Juliana fechada no seu quarto, encruzada na esteira, inchada de alegria, com o candeeiro sobre uma cadeira, desmarcava roupa, desfazendo as duas letras de Luísa, marcando regaladamente as suas, a linha vermelha, enormes - J C T - Juliana Couceiro Tavira!
Mas enfim cessou, porque, como ela dizia, de roupa branca estava como um ovo.
— Agora, se a senhora me quiser ajudar com alguma coisa para sair...
E Luísa começou a vesti-la.
Deu-lhe um vestido roxo de seda, um casaco de casimira preta, com bordados a sutache. E receando que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as para ele as não reconhecer; mandou tingir de castanho o vestido; ela mesma por sua mão pôs uma guarnição de veludo no casaco. Trabalhava para ela, agora! Como acabaria tudo aquilo, Santo Deus?
Todavia Jorge um domingo disse ao jantar, rindo:
— Esta Juliana anda uma janota! Prospera a olhos vistos.
D. Felicidade, à noite, também notou:
— Que chique! Nem uma criada do paço!
— Coitada! Coisas que ela aproveita...
Prosperava, com efeito! Não punha na cama senão lençóis de linho. Reclamara colchões novos, um tapete para os pés da cama, felpudo! Os sachês que perfumavam a roupa de Luísa iam passando para a dobra das suas calcinhas. Tinha cortinas de cassa na janela, apanhadas com velhas fitas de seda azul; e sobre a cômoda dois vasos da Vista Alegre dourados! Enfim um dia santo, em lugar da cuia de retrós, apareceu com um chignon de cabelos!
Joana pasmava daquelas tafularias. Atribuía-as à bondade da senhora, e ressentia-se de ser "esquecida". Um dia mesmo, que Juliana estreara uma sombrinha, disse diante de Luísa, com uma voz de despeito:
— Para umas tudo, para outras nada!...
Luísa riu, acudiu:
— Tolices! Eu sou a mesma pra todas.
Mas refletiu: Joana podia ter desconfianças também, ter ouvido alguma coisa a Juliana... E logo ao outro dia, para a conservar contente e amiga, deu-lhe dois lenços de seda, depois dois mil réis para um vestido; e daí por diante nunca lhe recusou licença para sair à noitinha à casa de uma tia...
A Joana ia por toda a parte falando da senhora, que era um anjo. Na rua, de resto, tinha-se notado o luxo de Juliana. Sabia-se do "quarto novo", dizia-se baixo que tinha alcatifa! O Paula decidira, com indignação, que ali positivamente havia marosca.
Mas Juliana uma tarde, diante do Paula e da estanqueira, explicou, acalmou as suspeitas.
— Ora! Dizem que tenho isto e aquilo. Não é tanto! Tenho as minhas comodidades. Mas também a maneira como eu lhes tratei a tia, de dia e de noite, sem arredar pé... Por mais que façam não me pagam, que arruinei a minha saúde!
Assim se justificou a prosperidade de Juliana. Era a família agradecida, dizia-se; tratavam-na como parenta!
E, pouco a pouco, a casa do Engenheiro teve para os criados da vizinhança a vaga sedução de um paraíso; dizia-se que as soldadas eram enormes, havia vinho à discrição, recebiam-se presentes todas as semanas, ceava-se todas as noites caldo de galinha! Cada um invejava aquela "pechincha". Pela inculcadeira, a fama da casa do Engenheiro alargou-se. Criou-se uma legenda.
Jorge, atônito, recebia todos os dias cartas de pessoas oferecendo-se para criados de quarto, criadas de dentro, cozinheiros, escudeiros, governantas, cocheiros, guarda-portões, ajudantes de cozinha... Citavam as casas titulares de que tinham saído; pediam audiência; suspeitando certas coisas uma bonita criada de quarto juntou a sua fotografia; um cozinheiro trouxe uma carta de empenho do diretor-geral do ministério.
— Estranho caso! - dizia Jorge, pasmado - disputam-se a honra de me servir! Imaginarão que me saiu a sorte grande?
Mas não dava muita atenção àquela singularidade. Vivia então muito ocupado; andava escrevendo o seu relatório; e todos os dias saía ao meio-dia, voltava às seis com rolos de papéis, mapas, brochuras, fatigado, berrando pelo jantar, radiante.
Contou o caso, todavia, rindo, um domingo à noite. O Conselheiro observou logo.
— Com o bom gênio de D. Luísa, com o seu, Jorge, neste bairro saudável, numa casa sem escândalos, sem questões de família, toda virtude, é natural que a criadagem menos favorecida aspire a uma posição tão agradável.
— Somos os amos ideais! - disse Jorge, batendo muito alegre no ombro.
A casa, com efeito, tornava-se agradável. Juliana exigira que o jantar fosse mais largo (para ter uma parte sua, sem sobejos), e como era boa cozinheira, vigiava os fogões, provava, ensinava pratos à Joana.
— Esta Joana é uma revelação - dizia Jorge - vê-se-lhe crescer o talento.
Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa fina sobre a pele, colchões macios, saboreava a vida; o seu temperamento adoçara-se naquelas abundâncias; depois, bem aconselhada pela tia Vitória, fazia o seu serviço com um zelo minucioso e hábil. Os vestidos de Luísa andavam cuidados como relíquias. Nunca os peitilhos de Jorge tinham resplandecido tanto! O sol de outubro alegrava a casa, muito asseada, de uma pacatez de abadia. Até o gato engordava.
E no meio daquela prosperidade - Luísa definhava-se. Até onde iria a tirania de Juliana? Era agora o seu terror. E como a odiava! Seguia-a por vezes com um olhar tão intensamente rancoroso, que receava que ela se voltasse subitamente, como ferida pelas costas. E via-a satisfeita, cantarolando a Carta Adorada, dormindo em colchões tão bons como os seus, pavoneando-se na sua roupa, reinando na sua casa! Era justo, justos céus?
Às vezes vinha-lhe uma revolta, torcia os braços, blasfemava, debatia-se na sua desgraça, como nas malhas de uma rede; mas, não encontrando nenhuma solução, recaía numa melancolia áspera - em que o seu gênio se pervertia. Seguia com satisfação a amarelidão crescente das feições de Juliana; tinha esperanças no aneurisma: não rebentaria um dia, o demônio?
E diante de Jorge tinha de a elogiar!
A vida pesava-lhe. Apenas ele pela manhã saía e fechava a cancela, logo as suas tristezas, os seus receios lhe desciam sobre a alma, devagar, como grandes véus espessos que se abatem lugubremente; não se vestia então até às quatro, cinco horas, e com o roupão solto, em chinelas, despenteada, arrastava o seu aborrecimento pelo quarto. Vinham-lhe, por momentos, de repente, desejos de fugir, ir meter-se num convento! A sua sensibilidade muito exaltada impeli-la-ia decerto a alguma resolução melodramática - se a não retivesse, com a força de uma sedução permanente, o seu amor por Jorge. Porque o amava agora, imensamente! Amava-o com cuidados de mãe, com ímpetos de concubina... Tinha ciúmes de tudo, até do ministério, até do relatório! Ia interrompê-lo a cada momento, tirar-lhe a pena da mão, reclamar o seu olhar, a sua voz; e os passos dele no corredor davam-lhe o alvoroço dos amores ilegítimos...