Authors: Eça de Queirós
— É uma grande alma - disse com ênfase o Conselheiro. - Todavia censurava-o um pouco por não se ocupar, não se tornar útil ao seu país. - Porque enfim - declarou - o piano é uma bonita habilidade, mas não dá uma posição na sociedade. - Citou então Ernestinho, que, posto que dando-se à arte dramática, era todavia (e a sua voz tornou-se grave), segundo todas as informações, um excelente empregado aduaneiro...
Que fazia ele, Ernestinho? - perguntaram.
Julião tinha-o encontrado. Dissera-lhe que a Honra e paixão ia daí a duas semanas; já se estavam a imprimir os cartazes, e na Rua dos Condes já lhe não chamavam senão o Dumas filho português! E o pobre rapaz crê-se realmente um Dumas filho!
— Não conheço esse autor - disse com gravidade o Conselheiro - posto que me pareça, pelo nome, ser filho do escritor que se tornou famoso pelos Três mosqueteiros e outras obras de imaginação!... Mas, de resto, o nosso Ledesma é um esmerado cultor da arte dos Corneilles! Não lhe parece, D. Luísa?
— Sim - disse ela com um sorriso vago.
Parecia preocupada. Fora já duas vezes ao relógio do quarto ver as horas; quase dez, e Juliana sem voltar! Quem havia de servir o chá? Ela mesma foi pôr as chávenas no tabuleiro, armar o paliteiro. Quando voltou à sala notou um silêncio enfastiado... - Queriam que fosse tocar? - perguntou.
Mas D. Felicidade que olhava, ao pé de Julião, as gravuras do Dante, ilustrado por G. Doré, que ele folheava com o volume sobre os joelhos, exclamou, de repente:
— Ai que bonito! Que é? Muito bonito! Viste, Luísa? Luísa aproximou-se.
— É um caso de amor infeliz, senhora D. Felicidade - disse Julião. - É a história triste de Paulo e Francesca de Rimini. - E explicando o desenho: - Aquela senhora sentada é Francesca; este moço de guedelha, ajoelhado aos pés dela, e que a abraça, é seu cunhado, e, lamento ter de o dizer, seu amante. E aquele barbaças que lá ao fundo levanta o reposteiro e saca da espada, é o marido. que vem, e zás! - E fez o gesto de enterrar o ferro.
— Safa! - fez D. Felicidade, arrepiada. - E aquele livro caído o que é? Estavam a ler?...
Julião disse discretamente:
— Sim... Tinham começado por ler, mas depois... Quel giorno più non vi leggemmo avante, o que quer dizer: - "E nós não lemos mais em todo o dia!"
— Puseram-se a derriçar - disse D. Felicidade com um sorriso.
— Pior, minha rica senhora, pior! Porque segundo a mesma confissão de Francesca, este moço, o da guedelha, o cunhado, La boca me bacciò tutto tremante, o que significa: - "A boca me beijou tremendo todo..."
— Ah! - fez D. Felicidade, com um olhar rápido para o Conselheiro.
— É uma novela?
— É o Dante, D. Felicidade - acudiu com severidade o Conselheiro -, um poema épico classificado entre os melhores. Inferior, porém, ao nosso Camões! Mas rival do famoso Mílton!
— Que nessas histórias estrangeiras os maridos matam sempre as mulheres! - exclamou ela. E voltando-se para o Conselheiro: - Pois não é verdade?
— Sim, D. Felicidade, repetem-se lá fora com freqüência essas tragédias domésticas. O desenfreamento das paixões é maior. Mas entre nós, digamo-lo com orgulho, o lar é muito respeitado. Assim eu, por exemplo, em todas as minhas relações em Lisboa, que são numerosas, graças a Deus, não conheço senão esposas modelos. - E com um sorriso cortesão: - De que é decerto a flor a dona da casa.
D. Felicidade revirou os olhos para Luísa que estava encostada à cadeira dela, e batendo-lhe no braço:
— Isto é uma jóia! - disse com amor.
— E de resto - acudiu o Conselheiro - o nosso Jorge merece-o. Porque, como diz o poeta:
Seu coração é nobre, e a fronte altiva
Revela-lhe da alma a pura essência.
Aquela conversação impacientava Luísa. Ia sentar-se ao piano, quando D. Felicidade exclamou: - Dize cá, então não se toma hoje chá nesta casa?
Luísa foi outra vez à cozinha. Disse a Joana que viesse ela mesma com o chá. - E daí a pouco Joana, de avental branco, vermelha, muito atarantada, entrou com o tabuleiro.
— E a Juliana? - perguntou logo D. Felicidade.
— Saiu, coitada - explicou, Luísa -, tem andado doente...
— E anda-te então por fora até estas horas?... Boa! Até desacredita uma casa...
O Conselheiro também achava imprudente:
— Porque enfim as tentações são grandes numa capital, minha senhora!
Julião exclamou, rindo:
— Não, se aquela é tentada, descreio para sempre e totalmente, dos meus contemporâneos.
— Oh, Sr. Zuzarte! - acudiu o Conselheiro, quase severamente - referia-me a outras tentações: entrar, por exemplo, numa loja de bebidas, apetecer-lhe ir ao circo e desleixar os seus deveres...
Mas D. Felicidade não podia sofrer a Juliana: achava-lhe cara de Judas, tinha ar de ser capaz de tudo...
Luísa defendeu-a; era muito serviçal, muito boa engomadeira, muito honesta...
— E anda-te pela rua até às onze da noite!... Credo! Fosse comigo!
— E creio - observou o Conselheiro - que tem uma doença mortal. Não é verdade, Sr. Zuzarte?
— Mortal. Um aneurisma - respondeu Julião, sem levantar os olhos.
— Ainda para mais! - exclamou D. Felicidade. E abaixando a voz: - Tu o que deves fazer é descartar-te dela! Uma criada com uma doença dessas! Que até lhe pode arrebentar a vir dar um copo de água à gente. Cruzes!
O Conselheiro apoiava:
— E às vezes, que embaraços com a autoridade!
Julião fechou o Dante, e disse:
— Eu, tem-me esquecido de avisar o Jorge; mas um dia a criatura cai-lhes redonda no chão. - E sorveu um gole de chá.
Luísa estava aflita. Parecia-lhe que uma nova complicação se formava para a torturar... Pôs-se a dizer que era tão difícil arranjar criadas...
Lá isso era, concordaram.
Falaram de criados, das suas exigências. Estavam cada vez mais atrevidos! E em se lhes dando confiança! E que imoralidade!...
— Muitas vezes é culpa das amas - disse D. Felicidade. - Fazem das criadas confidentes, e isto, em elas apanhando um segredo, tornam-se as donas da casa...
As mãos trêmulas de Luísa faziam-lhe tilintar a chávena. Disse, com uma vota afetadamente risonha:
— E o Conselheiro, que tal de criados?
Acácio tossiu:
— Bem. Tenho uma pessoa respeitável, com bom paladar, muito escrupulosa em contas...
— E que não é feia - acudiu Julião. - Assim me pareceu uma vez que fui à Rua do Ferregial...
Uma vermelhidão espalhara-se pela calva do Conselheiro. D. Felicidade fitava-o ansiosamente, com a pupila chamejante. Acácio, então, disse com severidade:
— Nunca reparo para a fisionomia dos subalternos, Sr. Zuzarte.
Julião ergueu-se e enterrando as mãos nos bolsos, jovialmente:
— Foi um grande erro abolir a escravatura!...
— E o princípio da liberdade? - acudiu logo o Conselheiro. - E o Princípio da liberdade? Que os pretos eram grandes cozinheiros, concordo... Mas a liberdade é um bem maior.
Alargou-se então em considerações: fulminou os horrores do tráfico, lançou suspeitas sobre a filantropia dos ingleses, foi severo com os plantadores da Nova Orleans, contou o caso da Charles et Georges: dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.
D. Felicidade fora-se sentar ao pé de Luísa e muito inquieta, falando-lhe ao ouvido:
— Tu conheces a criada do Conselheiro?
— Não.
— Será bonita?
Luísa encolheu os ombros.
— Não sei que me diz o coração, Luísa! Estou a abafar!
E enquanto Acácio, de pé, perorava para Julião, D. Felicidade ia murmurando a Luísa as queixas da sua paixão.
Que alívio para Luísa quando eles saíram! O que ela sofrera, lá por dentro, toda aquela noite! Que maçadores, que idiotas! - E a outra sem vir! Oh, que vida a sua!
Foi à cozinha dizer a Joana:
— Espere pela Juliana, tenha paciência. Que ela não pode tardar; aquilo a mulher achou-se pior!
Mas já passava de meia-noite, já Luísa estava deitada, quando a campainha tocou de leve; depois mais forte; enfim, com impaciência.
A rapariga adormeceu, pensou Luísa. Saltou da cama, subiu descalça à cozinha. Joana, estirada para cima da mesa, ressonava ao pé do candeeiro de petróleo, que fumegava fetidamente. Sacudiu-a, fê-la pôr de pé, estremunhada; voltou, correndo, deitar-se; e sentiu daí a pouco, no corredor, a voz de Juliana dizer com satisfação:
— Já está tudo acomodado, hem? Pois eu estive no teatro. Muito bonito! Do melhor, Sra. Joana, do melhor!
Luísa adormeceu tarde, e durante toda a noite um sonho inquieto agitou-a. - Estava num teatro imenso, dourado como uma igreja. Era uma gala: jóias faiscavam sobre seios mimosos, condecorações reluziam sobre fardas palacianas. Na tribuna, um rei triste e moço, imóvel numa atitude rígida e hierática, sustentava na mão a esfera armilar, e o seu manto de veludo escuro, constelado de pedrarias como um firmamento, espalhava-se em redor em pregas de escultura, fazendo tropeçar a multidão dos cortesãos vestidos como valetes de paus.
Ela estava no palco; era atriz; debutava no drama de Ernestinho; e toda nervosa via diante de si na vasta platéia sussurrante, fileiras de olhos negros e acesos, cravados nela com furor; no meio a calva do Conselheiro, de uma redondeza nevada e nobre, sobressaia, rodeada como uma flor de um vôo amoroso de abelhas. No palco oscilava a vasta decoração de uma floresta; ela notava sobretudo, à esquerda, um carvalho secular, de uma arrogância heróica -cujo tronco tinha vaga configuração de uma fisionomia, e se parecia com Sebastião.
Mas o contra-regra bateu as palmas; era esguio, parecia-se com D. Quixote, trazia óculos redondos com aros de lata; brandia o Jornal do Comércio torcido em saca-rolhas, e gania: "Salta a cenazinha de amor! Salta-se essa maravilha!" Então a orquestra, onde os olhos dos músicos reluziam como granadas e as suas cabeleiras se eriçavam como montões de estopa, tocou com uma lentidão melancólica o fado de Leopoldina; e uma voz áspera e canalha cantava em falsete:
Vejo-as nas nuvens da tarde,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
Luísa achava-se nos braços de Basílio que a enlaçavam, a queimavam; toda desfalecida, sentia-se perder, fundir-se num elemento quente como o sol e doce como o mel; gozava prodigiosamente; mas, por entre os seus soluços, sentia-se envergonhada, porque Basílio repetia no palco, sem pudor, os delírios libertinos do Paraíso! Como consentia ela?
O teatro, numa aclamação imensa bradava: "Bravo! Bis! Bis!" Lenços aos milhares esvoaçavam como borboletas brancas num campo de trevo; os braços nus das mulheres lançavam com um gesto ondeado ramos de violetas dobradas; o rei erguera-se espectralmente, e, triste, arremessou como um buquê a sua esfera armilar; e o Conselheiro logo, num frenesi, para seguir os exemplos de Sua Majestade, desaparafusando rapidamente a calva, atirou-lha, com um berro de dor e de glória! O contra-regra gania: - "Agradeçam! Agradeçam!" Ela curvava-se: os seus cabelos de Madalena rojavam pelo tablado; e Basílio, a seu lado, seguia com olhos vivos os charutos que lhe atiravam, apanhando-os com a graça de um toureiro e a destreza de um clown!
Subitamente, porém, todo o teatro teve um "ah!" de espanto. Fez-se um silêncio ansioso e trágico; e todos os olhos, milhares de olhos atônitos se fitavam nó pano de fundo, onde um caramanchão arqueava a sua estrutura toda estrelada de rosinhas brancas. Ela voltou-se também como magnetizada, e viu Jorge, Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas pretas, com um punhal na mão; e a lâmina reluzia - menos que os olhos dele! Aproximou-se da rampa e curvando-se, disse com uma voz graciosa:
— Real Majestade, senhor infante, senhor governador civil, minhas senhoras, e meus senhores - agora é comigo! Reparem neste trabalhinho!
Caminhou então para ela com passos marmóreos que faziam oscilar o tablado; agarrou-lhe os cabelos, como um molho de erva que se quer arrancar; Curvou-lhe a cabeça para trás; ergueu de um modo clássico o punhal; fez a pontaria ao seio esquerdo; e balançando o corpo, piscando o olho, cravou-lhe o ferro!
— Muito bonito! - disse uma voz. - Rico trabalho!
Era Basílio que fizera entrar nobremente na platéia o seu faéton! Direito na almofada, com o chapéu ao lado, uma rosa na sobrecasaca, continha com a mão negligente a inquietação soberba dos seus cavalos ingleses; e ao seu lado, sentado como um trintanário coberto das suas vestes sacerdotais, vinha o patriarca de Jerusalém! - Mas Jorge arrancara o punhal todo escarlate; as gotas de sangue corriam até a ponta, coalhavam; caíam depois com um som cristalino, punham-se a rolar pelo tablado como continhas de vidro vermelho. Ela deitara-se, expirante, sob o carvalho que se parecia com Sebastião; então, como a terra era dura, a árvore estendeu por baixo dela as suas raízes, macias como coxins de penas; como o sol a mordia, a árvore desdobrou sobre ela as suas ramagens, como os panos de uma tenda; e das folhas deixava-lhe escorrer sobre os lábios gotas de vinho da Madeira! Ela via no entanto com terror o seu sangue sair da ferida, vermelho e forte, correr, alastrar-se, fazendo poças aqui, ribeirinhos tortuosos além. E ouvia a platéia berrar:
— O autor! Fora o autor!
Ernestinho, muito frisado, pálido, apareceu; agradecia soluçando; e, às cortesias, saltava aqui, acolá - para não sujar no sangue da prima Luísa os seus sapatinhos de verniz...
Sentiu que ia morrer! Uma voz disse vagamente: - Olá, como vai isso? - Parecia-lhe de Jorge. De onde vinha? Do céu? Da platéia? Do corredor? Um ruído forte, como de uma mala que se deixa cair, acordou-a. Sentou-se na cama.
— Bem, deixe aí - disse a voz de Jorge.
Saltou em camisa. Ele entrava. E ficaram enlaçados, num longo abraço, os beiços colados, sem uma palavra. O relógio do quarto dava sete horas.
Nesse dia pela uma hora Jorge e Luísa acabavam de almoçar, como na véspera da partida dele. Mas agora não pesava a faiscante inclemência da calma; as janelas estavam abertas ao sol amável de outubro; já passavam no ar certas frescuras outonais; havia uma palidez meiga na luz; à tardinha já sabiam bem os paletós; e tons amarelados começavam a envelhecer as verduras.
— Que bom achar-se a gente outra vez no seu ninho! - disse Jorge, estirando-se na voltaire.
Estivera contando a Luísa a sua viagem. Tinha trabalhado como um mouro, e tinha ganho dinheiro! Trazia os elementos de um belo relatório; criara amigos naquela boa gente do Alentejo; estavam acabadas as soalherias, as cavalgadas pelos montados, os quartos de hospedaria; e ali estava enfim na sua casinha. E como na véspera da sua partida, soprava o fumo do cigarro, cofiando com delícias o bigode - porque tinha cortado a barba! Fora a grande admiração de Luísa, quando o viu. Ele explicara, com humilhação e melancolia, que tivera um furúnculo no queixo, com o calor...