Authors: Eça de Queirós
— E quando fosse outra coisa? - exclamou de repente. - Era um conto de réis, eram dois, estavas salva, estavas feliz!
Luísa sacudiu os ombros, indignada daquelas palavras - dos seus próprios pensamentos, talvez!
— É indecente! É horrível! - dizia.
Ficaram caladas.
— Ah! fosse eu!... - disse Leopoldina.
— Que fazias?
— Escrevia ao Castro, que viesse e com dinheiro!
— Isso és tu! - exclamou Luísa, arrebatadamente.
Leopoldina fez-se escarlate sob a camada de pó-de-arroz.
Mas Luísa atirou-lhe os braços ao pescoço:
— Perdoa-me, perdoa-me! Estou doida, não sei o que digo!...
Começaram ambas a chorar, muito nervosas.
Tu zangaste-te! - dizia Leopoldina cortada de soluços. - Mas é pra teu bem. É o que me parece melhor. Se eu pudesse dava-te o dinheiro... Fazia tudo. Acredita!
E abrindo os braços, indicando o seu corpo com um impudor sublime:
— Seiscentos mil réis! Se eu valesse tanto dinheiro, tinha-o amanhã!
Nós de dedos bateram à porta.
— Quem é?
— Eu - disse uma voz rouca.
— É meu marido. O animal ainda hoje não despegou de casa. Não posso abrir. Logo.
Luísa limpava os olhos, à pressa, punha o chapéu.
— Quando voltas? - perguntou Leopoldina.
— Quando puder, se não escrevo-te.
— Bem. Eu vou pensar, vou esquadrinhar...
Luísa agarrou-lhe o braço:
— E disto nem palavra.
— Doida!
Saiu. Foi subindo devagar até ao Largo de São Roque. A porta da Igreja da Misericórdia estava aberta, com o seu largo reposteiro vermelho de armas bordadas que o vento agitava brandamente. Veio-lhe um desejo de entrar. Não sabia para quê; mas parecia-lhe que depois da excitação apaixonada em que vibrara, o fresco silêncio da igreja a acalmaria. E depois sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus! Necessitava alguma coisa de superior, de forte a que se amparar. Foi-se ajoelhar ao pé de um altar, persignou-se, rezou o padre-nosso, depois a salve-rainha. Mas aquelas orações, que ela recitava em pequena, não a consolavam; sentia que eram sons inertes que não iam mais alto no caminho do céu que a sua mesma respiração; não as compreendia bem, nem se aplicavam ao seu caso; Deus, por elas, nunca poderia saber o que ela pedia, ali, prostrada na aflição. Quereria falar a Deus, abrir-se toda a Ele; mas com que linguagem? Com as palavras triviais, como se falasse a Leopoldina! Iriam as suas confidências tão longe que O alcançassem? Estaria Ele tão perto que a ouvisse? E ficou ajoelhada, os braços moles, as mãos cruzadas no regaço, olhando as velas de cera tristes, os bordados desbotados do frontal, a carinha rosada e redonda de um Menino Jesus!
Lentamente perdeu-se num cismar que ela não dirigia, que se formava e se movia no seu cérebro, com a flutuação de um fumo que se eleva. Pensava no tempo tão distante, em que, por melancolia e por sentimentalidade, freqüentava mais as igrejas. Ainda a mamã vivia então; e ela com o coração quebrado - quando o outro, Basílio, lhe escrevera, rompendo - procurava dissipar a sua tristeza nas consolações da devoção. Uma amiga sua, a Joana Silveira, fora por esse tempo professar à França; e ela às vezes lembrava-se de partir também, ser irmã de caridade, levantar os feridos nos campos de batalha ou viver na paz de uma cela mística! Que diferente a sua vida teria sido - desta agora tão alvoroçada de cólera e tão carregada de pecado!... Onde estaria? Longe, nalgum mosteiro antigo, entre arvoredos escuros, num vale solitário e contemplativo; na Escócia, talvez, país que ela sempre amara desde as suas leituras de Walter Scott. Podia ser nas verde-negras terras de Lammermoor ou de Glencoe, nalguma velha abadia saxônia. Em redor os montes cobertos de abetos, esbatidos nas névoas, isolam aqueles retiros numa paz funerária; num céu saudoso, as nuvens passam devagar, com recolhimento; nenhum som festivo quebra a meiga taciturnidade das coisas; revoadas de corvos cortam à tarde o ar num vôo triangular. Ali viveria entre as monjas de alta estatura e olhar céltico, filhas de duques normandos ou de lordes de clãs convertidos a Roma; leria livros doces e cheios das coisas do céu; sentada na estreita janela da sua cela, veria passar nas matas baixas os altos paus dos veados, ou pelas tardes vaporosas escutaria o som distante da bagpipe, que vai tristemente tocando o pastor que vem dos vales de Calêndar; e todo o ar estaria cheio do murmúrio choroso e gotejante dos fios de água, que por entre as relvas escuras caem de rocha em rocha!
Ou então seria outra existência mais regalada, no convento pacato de uma boa província portuguesa. Ali os tetos são baixos; as paredes caiadas faiscam ao sol, com as suas gradezinhas devotas; os sinos repicam no vivo ar azul; em roda, nos campos de oliveiras que dão azeite para o convento, raparigas varejam a azeitona cantando; no pátio lajeado de uma pedra miudinha as mulas do almocreve, sacudindo a mosca, batem com a ferradura; matronas cochicham ao pé da roda; um carro chia na estrada empoeirada e branca; galos cacarejam, brilhando ao sol; e freiras gordinhas, de olho negro chalram nos frescos corredores.
Ali viveria, engordando, com uma quebrazinha de sono à hora do coro, bebendo copinhos de licor de rosa no quarto da madre-escrivã, copiando receitas de doces com uma letra garrafal; morreria velha, ouvindo as andorinhas cantar à beira da sua grade; e o senhor bispo na sua visita, com a pitada nos seus dedos brancos, ouviria sorrindo da boca da madre-abadessa a história edificante da sua santa morte
Um sacristão, que passava, escarrou fortemente; e, como um bando de pássaros que se calam a um ruído brusco, todos os seus sonhos fugiram. Suspirou, ergueu-se devagar, foi indo para casa, triste.
Foi Juliana quem veio abrir, e logo no corredor, com a voz suplicante e baixa:
— A senhora por quem é perdoe, que depois estava doida! Estava com a cabeça perdida, não tinha dormido nada toda a noite. Fiquei mais aflita...
Luísa não respondeu, entrou na sala. Sebastião, que vinha jantar, tocava a serenata de D. Juan - e apenas ela apareceu:
— De onde vem, tão pálida?
— Debilidade, Sebastião, venho da igreja...
Jorge entrava do escritório com uns papéis na mão:
— Da igreja! - exclamou. - Que horror!
Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de Cavaleiro da Ordem de São Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes...
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o Conselheiro, depois de os abraçar um por um, numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou:
— Não o esperava tão cedo da real munificiência! Não o esperava tão cedo! - e acrescentou, pondo a mão espalmada sobre o peito: - Direi como o filósofo: "Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!"
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para um jantar na quinta-feira, um modesto jantar de rapazes, no seu humilde tugúrio, para festejarem a régia graça.
— Às cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os três, que se tinham encontrado na Casa Havanesa, eram introduzidos por uma rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala do Conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarelo ocupava a parede do fundo, tendo aos pés um tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um búfalo cor de chocolate; por cima uma pintura tratada a tons cor de carne, e cheia de corpos nus cobertos de capacetes, representava o valente Aquiles arrastando Heitor em torno dos muros de Tróia. Um piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de baeta verde, enchia o intervalo das duas janelas. Sobre uma mesa de jogo, entre dois castiçais de prata, uma galguinha de vidro transparente galopava; e o objeto em que se sentia mais o calor do uso era uma caixa de música de dezoito peças!
O Conselheiro recebeu-os, com o hábito de São Tiago sobre a lapela do fraque preto. Havia outro sujeito na sala, o Sr. Alves Coutinho. Era picado das bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos ombros; quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas, com pasmo, o seu bigode pelado arreganhava-se logo por hábito, num sorriso alvar que mostrava uma boca medonha cheia de dentes podres; falava pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em tudo; havia nele o ar de um deboche banal e de um embrutecimento antigo. Era um empregado do ministério do Reino, ilustre pela sua boa letra.
Daí a pouco entrou a figura conhecida do Saavedra, redator do Século. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas de ouro acentuavam o seu tom oficial; trazia ainda no queixo o pó-de-arroz, que lhe pusera momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada numa luva nova, cor de gema de ovo.
— Estamos todos! - disse com júbilo o Conselheiro. E curvando-se: - Bem-vindos, meus amigos! Estamos talvez mais à vontade no meu quarto de estudo! Por aqui. Há um degrau, cuidado! Eis o meu Sancra Sancrorum!
Numa saleta muito espanejada a que as cortinas de cassa, a luz de duas janelas de peitoril e o papel claro davam um aspecto alvadio, estava a larga escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata, os lápis muito aparados, as réguas bem dispostas. Via-se o sinete de armas do Conselheiro, pousado sobre a Carta Constitucional ricamente encadernada. Encaixilhada, na parede, pendia a carta régia que o nomeara Conselheiro; defronte uma litografia de El-rei; e sobre uma mesa era eminente o busto em gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto da cabeça uma coroa de perpétuas - que ao mesmo tempo o glorificava e o chorava.
Julião pusera-se logo a examinar a livraria.
— Prezo-me de ter os autores mais ilustres, amigo Zuzarte! - disse com orgulho o Conselheiro.
Mostrou-lhe a História do consulado e do império, as obras de Delille, o Dicionário da conversação, a ediçãozinha bojuda da Enciclopédia Roret, o Parnaso lusitano. Falou dos seus trabalhos; e acrescentou que, vendo ali reunidas pessoas de tão subida ilustração, desejaria muito ler-lhes algumas das provas que estava revendo do seu novo livro - Descrição das principais cidades do reino e seus estabelecimentos, para ouvir a opinião deles, desassombrada e severa!
— Se não acham maçada...
— Prazer, Conselheiro! Prazer!
Escolheu então, "como mais própria para dar idéia da importância do trabalho", a página relativa a Coimbra. Assoou-se, colocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
— ... Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor, o saudoso Mondego. E em seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canoras soltam seus melancólicos trilos. Quando vos aproximais pela estrada de Lisboa, onde outrora uma bem organizada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou à fumegante locomotiva, vede-la branquejando, coroada do edifício imponente da Universidade, asilo da sabedoria. Lá campeia a torre com o sino, que em sua folgazã linguagem a mocidade estudiosa chama "a cabra". Para além logo uma copada árvore vos atrai as vistas: é a celebrada árvore dos Dórias, que dilata seus seculares ramos no jardim de um dos membros desta respeitável família. E avistais logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte, em seus inocentes recreios, os briosos moços, esperança da pátria, ou requebrando galanteios com as ternas camponesas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo em suas mentes os problemas mais árduos de seus bem elaborados compêndios...
— Está a sopa na mesa - veio dizer uma criada, de avental branco, muito nutrida.
— Muito bem, Conselheiro, muito bem! - disse logo o Saavedra do Século, erguendo-se. - E admirável!
Declarou para os lados com autoridade que o estilo era digno de um Rebelo ou de um Latino, e que realmente estava-se precisando muito em Portugal de uma obra daquele quilate... E pensava baixo: "Grandíssima cavalgadura!..." O que era a sua apreciação genérica de todas as obras contemporâneas - excetuando os seus artigos no Século.
— Que lhe pareceu, meu bom amigo? - perguntou baixo o Conselheiro a Julião, passando-lhe a mão sobre o ombro. - Mas uma opinião desafrontada, meu Zuzarte!
— Sr. Conselheiro - disse Julião com uma voz profunda - tenho-lhe inveja! E as suas lunetas escuras fixavam-se com uma preocupação crescente num xale-manta pardo, que a um canto cobria cuidadosamente, a julgar pelas saliências, altas pilhas de livros. Que seria? - Tenho-lhe inveja! - repetiu. - E outra coisa, Conselheiro, não se me dava de lavar as mãos.
Acácio levou-o logo ao seu quarto e retirou-se discretamente. Julião, sempre curioso, observou, surpreendido, duas grandes litografias aos lados da cama - um Ecce homo! e a Virgem das Sete Dores. O quarto era esteirado, o leito baixo e largo. Abriu então a gavetinha da mesa de cabeceira, e viu, espantado, uma touca e o volume brochado das poesias obscenas de Bocage! Entreabriu os cortinados fechados; e teve a consolação de verificar que havia sobre o travesseiro duas fronhazinhas chegadas de um modo conjugal e terno!
Apenas ele saiu do quarto, limpando as unhas com o lenço, o Conselheiro conduziu-os à sala de jantar, dizendo jovialmente:
— Não esperem o festim de Lúculo: é apenas o modesto passadio de um humilde filósofo!
Mas o Alves Coutinho extasiou-se sobre a abundância das travessas de doce; havia creme crestado a ferro de engomar, um prato de ovos queimados, aletria com as iniciais do Conselheiro desenhadas a canela.
— É um grande dia para Sebastião! - disse Jorge.
O Alves Coutinho voltou-se logo para Sebastião, esfregando as mãos, com um riso na face amarela:
— É cá dos meus, hem? Gosta do belo doce! Também me pelo, também me pelo!...
Houve então um silêncio. As colheres de prata, remexendo devagar a sopa muito quente, agitavam os longos canudos brancos e moles do macarrão.
O Conselheiro disse:
— Não sei se gostarão da sopa. Eu adoro o macarrão!
— Gosta do macarrão? - acudiu o Alves.
— Muito, meu Alves. Lembra-me a Itália! - E acrescentou: - País que sempre desejei ver. Dizem-me que as suas ruínas são de primeira ordem. Pode ir trazendo o cozido, Sra. Filomena... - Mas detendo-a, com um gesto grave: - Perdão, com franqueza, preferem o cozido ou o peixe? É um pargo.