Authors: Eça de Queirós
— Que me dizes à carta dele?
— Os meus parabéns - disse Luísa rindo.
— É o milagre! exclamou D. Felicidade - já é o milagre a fazer-se! - E mais baixo: - Mandei o homem! O que eu te disse, o galego!
Luísa não compreendia.
— O homem a Tui, à mulher de virtude! Levou o meu retrato e o dele. Partiu há uma semana; a mulher naturalmente já começou a enterrar-lhe as agulhas no coração...
— Que agulhas? - perguntou Luísa atônita.
Estavam de pé, junto ao toucador. E D. Felicidade com uma voz misteriosa:
— A mulher faz um coração de cera, cola-o ao retrato do Conselheiro, e durante uma semana à meia-noite crava-lhe uma agulha benta com o preparo que ela tem, e faz as orações...
— E deste o dinheiro ao homem?
— Oito moedas.
— Oh, D. Felicidade!
— Ai! Não me digas! Que já vês! Que mudanças!. Daqui a uns dias, baba-se! Ai! Nossa Senhora da Alegria o permita! Nossa Senhora o permita! Que aquele
homem traz-me doida. De noite, é cada sonho! Até ando em pecado mortal! E são suores! Mudo de camisa três e quatro vezes!
E ia-se olhando ao espelho; queria convencer-se que as belezas da sua pessoa ajudariam as agulhas da bruxa; alisou o cabelo.
— Não me achas mais magra?
— Não.
— Ai estou, filha, estou! - E mostrou o corpete lasso.
Já fazia planos. Iria passar a lua-de-mel a Sintra... Os olhos afogavam-se-lhe num fluido lúbrico.
— Nossa Senhora da Alegria o permita! Tenho-lhe duas velas acesas, de dia e de noite...
Mas de repente a voz aflita de Joana bradou da escada da cozinha:
— Minha senhora! Minha senhora, acuda!
Luísa correu, Jorge também, que ouvira na sala o grito. Juliana estava
estendida no soalho da cozinha, desmaiada.
— Deu-lhe de repente, deu-lhe de repente! - exclamava Joana, muito branca, a tremer. - Tombou pro lado de repente...
Julião tranqüilizou-os logo; era uma síncope, simples. Transportaram-na para a cama. Julião fez-lhe esfregar violentamente com uma flanela quente as extremidades - e, mesmo antes que Joana atarantada, em cabelo, corresse à botica por um antiespasmódico, Juliana voltava a si, muito fraca. Quando desceram à, sala, Julião disse, enrolando o cigarro:
— Não vale nada. São muito freqüentes estas sincopes, nas doenças de coração. Esta é simples. Mas é o diabo, às vezes têm um caráter apoplético e vem a paralisia; pouco duradoura, sim, porque a efusão de sangue no cérebro é muito pequena, mas enfim, sempre desagradável. - E acendendo o cigarro: - Essa mulher um dia morre-lhes em casa.
Jorge, preocupado, passeava pela sala com as mãos nos bolsos.
— Sempre o tenho dito - acudiu D. Felicidade, baixando a voz, assustada.
— Sempre o tenho dito. E desfazerem-se dela.
— Além disso o tratamento é incompatível com o serviço - disse Julião.
— Enfim, mesmo a engomar roupa se pode tomar digitalis ou quinino; mas é que o verdadeiro tratamento é o repouso, é a absoluta exclusão da fadiga. Que ela um dia se zangue ou que tenha uma manhã de canseira, e pode ir-se!
— E vai adiantada a doença? - perguntou Jorge.
— Pelo que ela diz já tem a dificuldade asmática, opressões, uma dor aguda na região cardíaca, flatulência, umidade nas extremidades - o diabo!
— Olha que espiga! - murmurou Jorge olhando em roda.
— É pô-la na rua! - resumiu D. Felicidade.
Quando ficaram sós, às onze horas, Jorge disse logo a Luísa:
— Que te parece esta, hem? É necessário descartar-mo-nos da criatura. Não quero que me morra em casa!
Ela, sem se voltar, diante do toucador, tirando os brincos começou a dizer - que não se podia mandar também a pobre criatura morrer para a rua... Lembrou vagamente o que ela tinha feito pela tia Virgínia... Ia colocando devagar as suas palavras com a cautela com que se pousa o pé num terreno traiçoeiro. - Podia-se talvez dar-lhe algum dinheiro, que ela fosse viver algures...
Jorge, depois de um silêncio, respondeu:
— Não tenho dúvida em lhe dar dez ou doze libras, e que se vá, que se arranje!
"Dez ou doze libras!" - pensou Luísa com um sorriso infeliz. - E à beira do toucador olhava para o seu rosto, ao espelho, com uma indefinida saudade, como se as suas faces devessem dentro em pouco estar cavadas pela aflição, e os seus olhos fatigados pelas lágrimas...
Porque, enfim, a crise tinha chegado. Se Jorge insistisse em despedir a criatura, ela não podia, sem provocar um espanto e uma explicação, dizer a Jorge: "não quero que ela saia, quero que ela aqui morra!" E Juliana vendo-se expulsa, desesperada, doente, percebendo que Luísa não a defendia, não a reclamava - vingar-se-ia! Que havia de fazer?
Ergueu-se ao outro dia numa grande agitação. Juliana, muito fatigada, ainda estava na cama. E enquanto Joana punha a mesa, Luísa sentada na voltaire. à janela da sala de jantar, lia maquinalmente o Diário de Notícias, quase sem compreender, quando uma notícia, no alto da página, lhe deu um sobressalto:
"Parte além de amanhã para França o nosso amigo e conhecido banqueiro Castro, da firma Castro Miranda & Cia. Sua Excelência retira-se dos negócios da praça, e vai estabelecer-se definitivamente em França, perto de Bordéus, onde comprou ultimamente uma valiosa propriedade."
O Castro! O homem que lhe dava dinheiro, o que ela quisesse!, dizia Leopoldina. Partia!... E apesar de ter achado, desde o primeiro momento, aquele recurso infame, vinha-lhe a seu pesar como uma desconsolação de o ver desaparecer! Porque nunca mais voltaria a Portugal, o Castro!... E de repente uma idéia atravessou-a, que a fez vibrar toda, erguer-se direita, muito pálida. - Se na véspera da partida dele, Santo Deus! se na véspera ela consentisse!... Oh! Era horrível! Nem pensar em tal!...
Mas pensou - e sentia-se toda fraca contra uma tentação crescente, que se lhe enroscava na alma com caricias persuasivas. É que então estava salva! Dava seiscentos mil réis a Juliana! E o demônio iria morrer para longe!
E ele, o homem, tomaria o paquete! Não teria de corar diante dele e o seu segredo ia para o estrangeiro, tão perdido como se fosse para o túmulo! - E, além disso, se o Castro tinha uma paixão por ela, era bem possível que lhe emprestasse, sem condições!...
Bom Deus! No dia seguinte podia ter ali na algibeira do seu roupão as notas, o ouro... Por que não? - Por que não? E vinha-lhe um desejo ansioso de se libertar, de viver feliz, sem agonias, sem martírios...
Voltou ao quarto. Pôs-se a remexer no toucador, olhando de lado Jorge que se vestia... A presença dele deu-lhe logo um remorso; ir pedir a um homem dinheiro, consentir nos seus olhares lascivos, nas suas palavras intencionais!... Que horror! - Mas já sutilizava. Era por Jorge, era por ele! Era para lhe poupar o desgosto de saber! Era para o poder amar livremente, toda a vida, sem receios, sem reservas...
Durante todo o almoço esteve calada. O rosto simpático de Jorge enternetecia-a: o outro parecia-lhe medonho, odiava-o já!...
Quando Jorge saiu ficou muito nervosa. Ia à janela; o sol parecia-lhe adorável, a rua atraía-a. - Por que não? Por que não?
A voz de Juliana, muito áspera, falou então nas escadas da cozinha; e aquele cantado odioso decidiu-a bruscamente.
Vestiu-se com cuidado: era mulher, quis parecer bonita. - E chegou toda esbaforida à casa de Leopoldina, quando dava meio-dia a São Roque. Encontrou-a vestida, esperando o almoço. E tirando imediatamente o chapéu, instalando-se no sofá, explicou muito claramente a Leopoldina a sua resolução. Queria o dinheiro do Castro. Emprestado ou dado, queria o dinheiro!... Estava numa aflição, devia valer-se de tudo!... Jorge queria despedir a mulher... Tinha medo de uma vingança dela... Queria dinheiro, ali estava!
— Mas assim de repente, filha! - disse Leopoldina, pasmada do seu olhar decidido.
— O Castro vai-se amanhã. Vai para Bordéus, para o inferno! É necessário fazer alguma coisa, já!
Leopoldina lembrou escrever-lhe.
— O que quiseres... Eu aqui estou!
A outra sentou-se devagar à mesa, escolheu uma folha de papel e, com o dedinho no ar, a cabeça de lado, começou a escrivinhar.
Luísa passeava pelo quarto, nervosa. Tinha agora uma resolução teimosa, que a presença de Leopoldina fortificava! Divertia-se aquela, dançava, ia ao campo, gozava, vivia, sem ter como ela uma tortura a minar-lhe, a estragar-lhe a vida! Ah! Não voltaria para casa sem levar na algibeira em boas libras o resgate, a salvação! Ainda que tivesse de ser vil como as do Bairro Alto! Estava farta das humilhações, dos sustos, das noites cortadas de pesadelos!... Queria saborear a vida, que diabo! O seu amor, o seu jantar, sem cuidados, com o coração contente!
— Vê lá - disse Leopoldina, lendo:
Meu Caro Amigo.
Desejo absolutamente falar-lhe. É um negócio grave. Venha logo que possa. Talvez me agradeça. Espero até às três horas, o mais tardar.
Com toda a estima,
Sua amiga
Leopoldina.
— Que te parece?
— Horrível! Mas está bem... Está muito bem! Risca-lhe o "talvez me agradeça". É melhor.
Leopoldina copiou o bilhete, mandou-o pela Justina, num trem.
— E agora vou almoçar, que me não tenho nas pernas.
A sala de jantar dava para um saguão estreito. As paredes estavam cobertas de uma pintura medonha, em que grandes manchas verdes semelhavam colinas, e linhas azul-ferretes representavam lagos. Um armário, no ângulo da parede, servia de guarda-louça. As cadeiras de palhinha tinham almofadinhas de paninho vermelho; e na toalha havia nódoas do café da véspera.
— De uma coisa podes tu ter a certeza - dizia Leopoldina, bebendo grandes goles de chá -, é que o Castro é um homem para um segredo!... Se te emprestar o dinheiro, que empresta, daquela boca não sai uma palavra. Lá nisso é perfeito... Olha que foi o amante da Videira anos! E nem ao Mendonça, que é o seu íntimo, disse uma palavra. Nem uma alusão! E um poço.
— Que Videira? - perguntou Luísa.
— Uma alta, de nariz grande, que tem um landô.
— Mas passa por uma mulher tão séria...
— Já tu vês! - E com um risinho: - Ai elas passam, passam. Lá passar. passam. A questão é conhecer-lhes os podres, minha fidalga!
E barrando de manteiga grandes fatias de pão, pôs-se a falar complacentemente dos escândalos de Lisboa, a desdobrar o sudário: citava nomes, especialidades, as que depois de terem feito o diabo gastam, numa devoção tardia, o resto de uma velha sensibilidade; que é por onde elas acabam, algumas é pelas sacristias! As que, cansadas decerto de uma virtude monótona, preparam habilmente o seu "fracasso" numa estação em Sintra ou em Cascais. E as meninas solteiras! Muito pequerrucho, por essas amas dos arredores, tem o direito de lhes chamar "mamã"! Outras mais prudentes, receando os resultados do amor, refugiam-se nas precauções da libertinagem... Sem contar as senhoras que, em vista dos pequenos ordenados, completam o marido com um sujeito suplementar! - Exagerava muito; mas odiava-as tanto! Porque todas tinham, mais ou menos, sabido conservar a exterioridade decente que ela perdera, e manobravam com habilidade onde ela, a tola, tivera só a sinceridade! E enquanto elas conservavam as suas relações, convites para soirées, a estima da corte - ela perdera tudo, era apenas a Quebrais!...
Aquela conversação enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.
Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por aquele sentimento de uma forte imoralidade geral, onde as resistências, os orgulhos se amolecem, se eslanguescem - como os músculos numa estufa fortemente saturada de exalações mornas.
— Este mundo é uma história - disse Leopoldina erguendo-se e espreguiçando-se.
— E teu marido onde está? - perguntou Luísa no corredor.
— Fora para o Porto. Estavam à vontade, podiam cometer crimes!
E Leopoldina, no quarto, estirando-se no canapé, com o cigarrinho La Ferme na boca, começou também a queixar-se.
Andava aborrecida há tempos; enfastiava-se, achava tudo secante; queria alguma coisa de novo, de desusado! Sentia-se bocejar por todos os poros do seu corpo...
— E o Fernando, então? - disse distraidamente Luísa, que a cada momento se aproximava da janela.
— Um idiota! - respondeu Leopoldina com um movimento de ombros, cheio de saciedade e de desprezo.
Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar - ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata... Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!
E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada:
— Aborreço-me! Aborreço-me!... Oh, céus! Ficaram um momento caladas.
— Mas, que se lhe há de dizer, a esse homem? - perguntou de repente Luísa.
Leopoldina, soprando o fumo do cigarro, com a voz muito preguiçosa:
— Diz-se-lhe que se precisa um conto de réis, ou seiscentos mil réis... Que se lhe há de então dizer? Que se lhe paga.
— Como?
Leopoldina disse, deitada, com os olhos no teto:
— Em afeto.
— Oh! És horrível! - exclamou Luísa, exasperada. - Vês-me aqui desgraçada, meia doida, dizes que és minha amiga, e estás a rir, a escarnecer... - A sua voz tremia, quase chorava.
— Mas também que pergunta tão tola! Como se lhe há de pagar?... Tu não sabes?
Olharam-se um momento.
— Não, eu vou-me embora, Leopoldina! - exclamou Luísa.
— Não sejas criança!
Um trem parou na rua. A Justina apareceu. Não encontrara o Sr. Castro em casa, estava no escritório. Fora lá, disse que vinha imediatamente.
Mas Luísa, muito pálida, tinha o chapéu na mão.
— Não - disse Leopoldina quase escandalizada -, tu agora não me deixas aqui com o homem! Que lhe hei de eu dizer?
— É horrível! - murmurou Luísa com uma lágrima nas pálpebras, deixando cair os braços, solicitada pelo interesse, enleada pela vergonha, muito infeliz!