Authors: Eça de Queirós
Perguntaram por Jorge.
E caladas, olhavam a escada de lance decorativo onde globos foscos derramavam uma luz doce. D. Felicidade, muito curiosa da "vida de hotel", reparou na engomadeira que entrou com um cesto de roupa; depois numa senhora que lhe pareceu estabanada, e que descia, vestida de soirée, mostrando o pé calçado num sapato redondo de cetim branco; e sorria de ver sujeitos roçarem-se pelo trem, lançando para dentro olhares gulosos.
— Estão a arder por saber quem somos.
Luísa calada apertava nas mãos o seu ramo. Enfim Jorge apareceu no alto da escada, conversando muito interessadamente com um sujeito magríssimo, de chapéu ao lado, as mãos nos bolsos de umas calças muito estreitas, e um enorme charuto enristado ao canto da boca. Paravam, gesticulavam, cochichavam. Por fim o sujeito apertou a mão de Jorge, falou-lhe ao ouvido, riu baixo, torcendo-se, bateu-lhe no ombro, obrigou-o muito seriamente a aceitar outro charuto - e pondo o chapéu mais ao lado foi conversar com o guarda-portão.
Jorge correu à portinhola do trem, rindo:
— Então que extravagância é esta? Teatro, tipóias!... Eu reclamo o divórcio! Parecia muito jovial. Somente tinha pena de não estar vestido... Ficaria atrás no camarote. E para as não amarrotar subiu para a almofada.
Passava das oito horas quando o trem parou em São Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de seda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era à luz diminuída da rampa, a decoração clássica de uma cela de alquimista; embrulhado num roupão monástico, com uma abundância hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desiludido das ciências, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gás extravasado errava sutilmente. Aqui e além tosses expectoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.
Na frisa, para se colocarem, D. Felicidade e Luísa cochichavam, com gestozinhos de recusa, olhares suplicantes:
— Oh, D. Felicidade, por quem é!
— Se estou aqui muito bem...
— Não consinto...
Enfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior alteando o peito. Luísa ficara atrás calçando as luvas; enquanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com o chapéu que já duas vezes rolara.
— Tem banquinho, D. Felicidade?
— Obrigada, cá o sinto. - E remexeu os pés. - Que pena não se ver a família real!
Nos camarotes de assinantes iam aparecendo os altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços; peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam para as cadeiras devagar, com um ar gasto e íntimo, compondo o cabelo. Conversava-se baixo. Ao fundo da platéia havia um rumor desinquieto entre moços de jaquetão; e à entrada, sob a tribuna, viam-se, num aparato militar, correames polidos de municipais, bonés carregados de polícias; e reluzindo à luz, punhos de sabres.
Mas na orquestra correram fortes estremecimentos metálicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto tremia como um arbusto ao vento; um ruído de folhas de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mefistófeles ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas arrebitadas, uma barbilha insolente, un bel cavalier; e enquanto a sua voz poderosa saudava o doutor, as duas plumas vermelhas do gorro oscilavam sem cessar de um modo fanfarrão.
Luísa chegara-se para a frente; ao ruído da cadeira, cabeças na platéia voltaram-se, languidamente; pareceu decerto bonita, examinaram-na; ela, embaraçada, pôs-se a olhar para o palco muito séria: - por trás de véus sobrepostos que se levantavam, numa afetação de visão, Margarida apareceu fiando o linho, toda vestida de branco; a luz elétrica, envolvendo-a num tom cru, fazia-a parecer de gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda que a comparou a uma santa!
A visão desapareceu num trêmulo de rebecas. E depois de uma ária, Fausto, que ficara imóvel ao fundo do palco, debateu-se um momento dentro da túnica e das barbas, e emergiu jovem, gordinho, vestido de cor de lilás, coberto de pós-de-arroz, compondo o frisado do cabelo. As luzes da rampa subiram; uma instrumentação alegre e expansiva ressoou; Mefistófeles, apossando-se dele, arrastou-o sôfrego através da decoração. E o pano desceu rapidamente.
As platéias ergueram-se com um rumor grosso e lento. D. Felicidade um afrontada abanava-se. Examinaram então as famílias, algumas toaletes; e sorrindo concordaram que estava do mais fino.
Nos camarotes conversava-se sobriamente; às vezes uma jóia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos de asa de corvo nos cabelos pretos onde alvejavam camélias ou reluzia o aro de metal de um pente; os vidros redondos dos binóculos moviam-se devagar, picados de pontos luminosos.
Na platéia, nas bancadas clareadas, sujeitos quase deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos, acariciavam as luvas; velhos diletantes, de lenço de seda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade interessava-se por duas espanholas de verde, que na superior imobilizavam, numa afetação casta, os seus corpos de lupanar.
Um colega de Jorge, magrinho e janota, entrou então no camarote: parecia animado e perguntou logo se não sabiam o grande escândalo!... Não. E o engenheiro, com gestos vivos das suas mãozinhas calçadas numas luvas esverdeadas, contou que a mulher do Palma, o deputado, sabiam, tinha fugido!...
— Para o estrangeiro?
— Qual! - E a voz do engenheiro tinha agudos triunfantes. - Ai é que estava o bonito. Para casa de um espanhol que morava defronte!... Era divino! De resto - e a sua voz tornou-se grave e estava entusiasmado com o baixo!
E depois de ter sorrido, olhado pelo binóculo, ficou calado, extenuado do que dissera, batendo apenas de vez em quando no joelho de Jorge, com um "Sim, Senhor!" familiar, ou um "Então que é feito?" amigável.
Mas a campainha retinia finamente. O engenheiro saiu, em bicos de pés. E o pano ergueu-se devagar na alegria da quermesse, cheia de uma luz branca e dura. Casas acasteladas branquejavam no pano de fundo, nalguma colina do Reno amiga das vinhas. Escarranchado sobre uma pipa, o barrigudo e folgazão Rei Cambrinus ria enormemente, erguendo, na sua atitude de tabuleta gótica, a vasta caneca emblemática da cerveja germânica. E estudantes, judeus, reitres e donzelas, nas suas cores vivas de paninho, moviam-se de um modo automático e sonâmbulo, aos compassos largos da instrumentação festiva.
A valsa então desenrolou-se languidamente, como um fio de melodia, em espirais suaves que ondeavam e fugiam: Luísa seguia os pezinhos das dançarinas, as pernas musculosas volteando no tablado; e as saias tufadas e curtas faziam como o girar multiplicado e reproduzido de vagos discos de cambraia.
— Que bonito! - murmurava ela com uma felicidade no rosto.
— De apetite - afirmava D. Felicidade revirando os olhos.
Certas agudezas delicadas de flautins enterneciam Luísa; e a casa, Juliana, as suas misérias, tudo lhe parecia recuado, no fundo de uma noite esquecida.
Mas o jovial Diabo adiantava-se por entre os grupos, e logo, com gestos aduncos e rapaces, cantou o Dio del oro. A sua voz arremessada afirmava, num tom brutal, o poder do dinheiro; nas massas da instrumentação passavam sonoridades claras e tilintantes de um remexer sôfrego de tesouros; e as notas altas finais caíam, de um modo curto e seco, como marteladas triunfantes cunhando o divino ouro!
Luísa então viu D. Felicidade perturbar-se; e seguindo o seu olhar negro, subitamente avivado, descobriu na geral a calva polida do Conselheiro Acácio que cumprimentava, prometendo generosamente, com a mão espalmada, a sua visita próxima.
Veio, apenas o pano desceu, e felicitou-as imediatamente por terem escolhido aquela noite: a ópera era das melhores e estava gente muito fina. Lamentou ter perdido o primeiro ato; ainda que não gostasse extremamente da música, apreciava-o por ser muito filosófico. E, tomando da mão de Luísa o binóculo, explicou os camarotes, disse os títulos, citou as herdeiras ricas, nomeou os deputados, apontou os literatos. - Ah! Conhecia bem São Carlos! Havia dezoito anos!
D. Felicidade, rubra, admirava-o. O Conselheiro sentia que não pudessem ver o camarote real: a rainha, como sempre, estava adorável.
Sim? Como estava?
De veludo. Não sabia se roxo, se azul-escuro. Afirmar-se-ia, e viria dizer...
Mas quando o pano subiu, ficou sentado por trás de Luísa começando logo a explicar - que aquela (Siebel, colhendo flores no jardim de Margarida), posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil réis por mês...
— Mas apesar destes ordenadões morrem quase sempre na miséria - disse com reprovação. - Vícios, ceias, orgias, cavalgadas...
A portinha verde do jardim abriu-se, e Margarida entrou devagar, desfolhando o malmequer da legenda, caracterizada de virgem, com as duas longas tranças louras. Cismava, falava só, amava: a doce criatura sente em volta de si o ar pesado, e quereria bem que sua mãe voltasse!
Os olhos de Luísa encheram-se então de melancolia, com a saudosa balada do rei de Tule; aquela melodia dava-lhe a vaga sensação de um pálido país de amores espirituais, banhado de luares frios, longe, no Norte, junto a um mar gemente - ou de tristezas aristocráticas, cismadas num terraço, sob a sombra de um parque...
Mas o Conselheiro preveniu-as, dizendo:
— Agora é que é! Reparem. Agora é o ponto capital.
De joelhos, diante do cofre das jóias, a dama requebrava-se, garganteando; apertava nas mãos o colar, extasiada; punha os brincos com denguices delirantes; e da sua boca muito aberta saía um canto trinado, de uma cristalinidade aguda - entre o vago sussurro da admiração burguesa.
O Conselheiro disse discretamente:
— Bravo! Bravo!
E, excitado, dissertou: aquilo era o melhor da ópera! Era ali que se via a força das cantoras...
D. Felicidade quase tinha medo que lhe estalasse alguma coisa na garganta. Preocupava-se também com as jóias. Seriam falsas? Seriam dela?
— É para a tentar, não é verdade?
— É um drama alemão - disse-lhe baixo o Conselheiro.
Mas Mefistófeles ia arrastando a boa Marta; Fausto e Margarida perdiam-se nas sombras cúmplices do jardim afrodisíaco - e o Conselheiro observou que todo aquele ato era um pouco fresco.
D. Felicidade murmurou-lhe - entre repreensiva e extática:
— Quantas cenas não terá tido assim, maganão!
O Conselheiro fitou-a, indignado:
— O quê, minha senhora? Levar a desonra ao seio de uma família!
Luísa fez-lhe chuta, sorrindo. Interessava-se agora. Tinha escurecido; uma faixa de luz elétrica enchia o jardim de um vago luar azulado, onde os maciços arredondados se recortavam a pastas escuras; e Fausto e Margarida enlaçados, quase desfalecidos soltavam de um modo expirante o seu dueto: uma sensualidade delicada e moderna, com relances de um requinte devoto, arrastava-se na orquestra gemente; o tenor esforçava-se, agarrando o peito, com um jeito mórbido dos quadris, o olhar anuviado; e desprendendo-se da lânguida arcada dos violoncelos, o canto subia para as estrelas...
Al pallido chiarore
dei astri d'oro.
Mas o coração de Luísa batia precipitadamente; vira-se de repente sentada no divã, na sua sala, ainda tomada dos soluços do adultério, e Basílio, com o charuto ao canto da boca, batia distraído no piano aquela ária - "Al pallido chiarore dei astri d'oro". Dessa noite tinha vindo toda a sua miséria! - e subitamente, como longos véus fúnebres que descem e abafam, as recordações de Juliana, da casa, de Sebastião, vieram escurecer-lhe a alma.
Olhou o relógio. Eram dez horas. Que se passaria?
— Estás incomodada? - perguntou-lhe Jorge.
— Um pouco.
Margarida apoiava-se, expirante de voluptuosidade, ao rebordo da sua janelinha. Fausto corre. Enlaçam-se. E entre as gargalhadas do Diabo e o roncar dos rabecões - o pano desceu, pondo uma reticência pudica...
D. Felicidade, abrasada, quis água. Jorge apressou-se: queria bolos? Neve? A excelente senhora hesitou; o chique da neve atraía-a, mas coibiu-se com terror da cólica. Veio sentar-se ao fundo ao pé de Luísa, e ficou a olhar, vagamente cansada; havia um sussurro lento; bocejava-se discretamente; e o fumo dos cigarros, entrando de fora, fazia uma névoa apenas perceptível que enchia a sala, ia prender-se ao lustre, embaciando ligeiramente as luzes. Quando Jorge saiu o Conselheiro acompanhou-o; ia acima tomar o seu copo de gelatina...
— É a minha ceia em dia de São Carlos - disse.
Voltou daí a pouco, limpando os beiços ao lenço de seda, ter com Jorge que fumava no pequeno patamar junto à entrada das cadeiras:
— Veja isto, Conselheiro! - disse-lhe logo Jorge indignado, mostrando a parede. - Que escândalo!
Tinham desenhado, com o charuto apagado sobre a parede caiada, enormes figuras obscenas; e alguém, prudente e amigo da clareza, ajuntara por baixo as designações sexuais com uma boa letra cursiva.
E Jorge, revoltado:
— E passam por aqui senhoras! Vêem, lêem! Isto só em Portugal!...
O Conselheiro disse:
— A autoridade devia intervir, decerto... - Acrescentou com bonomia: - São rapazes, com o charuto. Apreciam muito esta distração... - E sorrindo, recordando-se: - Uma ocasião mesmo, o Conde de Vila Rica, que tem graça, muita graça, insistiu comigo, dando-me o charuto, para que eu fizesse um desenho... - E mais baixo: - Eu dei-lhe uma lição severa. Tomei o charuto...
— E fumou-o?
— Escrevi.
— Uma obscenidade?
O Conselheiro, recuando, exclamou com severidade:
— Jorge, conhece o meu caráter! Pois supõe...? - E acalmando-se: - Não, tomei o charuto e escrevi com mão firme: HONRA AO MÉRITO!
Mas a campainha retiniu, entraram no camarote. Luísa incomodada não quis sentar-se à frente. E o Conselheiro, grave, tomou o seu lugar - defronte de D. Felicidade. Foi para a nutrida senhora um momento feliz, de um gozo requintado. Estavam ambos, ali, como noivos! O seu peito abundante arfava; via-se a saírem; mais tarde de braço dado, entrarem num cupê estreito, pararem à porta da casa conjugal, pisarem o tapete da alcova. Tinha um suor à raiz dos cabelos - e vendo o Conselheiro sorrir-lhe, amável, com a sua calva toda luzidia ao gás, sentia um reconhecimento apaixonado pela mulher de virtude que àquela hora, no fundo da Galiza, estava cravando agulhas num coração de cera!...