Authors: Eça de Queirós
Juliana pôs-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe; tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso para Joana:
— E então a que horas veio o primo da senhora?
— Veio logo que vossemecê saiu, estavam a dar as nove.
— Ah!
Desceu com a lamparina; e sentindo Luísa na alcova despir-se:
— A senhora não quer chá? - perguntou, com muito interesse.
— Não.
Foi à sala, fechou o piano. Havia um forte cheiro de charuto. Pôs-se a olhar em redor, devagar, andando com um passo sutil... De repente agachou-se, ansiosamente: ao pé do divã uma coisa reluzia. Era uma travessa de Luísa, de tartaruga, com o aro dourado. Tornou a entrar no quarto em pontas de pés, pousou-a no toucador, entre os rolos de cabelo.
— Quem anda aí? - perguntou da alcova a voz sonolenta de Luísa.
— Sou eu, minha senhora, sou eu; estive a fechar a sala. Muito boas noites, minha senhora!
Àquela hora Basílio entrava no Grêmio. Procurou pelas salas. Estavam desertas. Dois sujeitos, com os rostos entre os punhos, curvados em atitudes lúgubres, ruminavam os jornais; aqui, além, junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca mastigavam torradas com uma satisfação plácida; as janelas estavam fechadas, a noite quente, e o calor mole do gás abafava. Ia descer quando de uma saleta de jogo, de repente, saiu o ruído irritado de uma altercação; trocavam-se injúrias, gritava-se: - Mente! O asno é você!
Basílio estacou, escutando. Mas subitamente, fez-se um grande silêncio; uma das vozes disse com brandura:
— Paus!
A outra respondeu com benevolência:
— É o que devia ter feito há pouco.
E imediatamente a questão rebentou de novo, estridente. Praguejavam, obscenidades.
Basílio foi ao bilhar. O Visconde Reinaldo, de pé, apoiado ao taco, seguia com uma imobilidade grave o jogo do seu parceiro; mas apenas viu Basílio, veio para ele rapidamente, e muito interessado:
— Então?
— Agora mesmo - disse Basílio mordendo o charuto.
— Enfim, hem? - exclamou Reinaldo, arregalando os olhos, com uma grande alegria.
— Enfim!
— Ainda bem, menino! Ainda bem!
Batia-lhe no ombro, comovido.
Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre o bilhar, com uma perna no ar, para dar com mais segurança o efeito, dizia com a voz constrangida pela atitude:
— Estimo, estimo, porque essa coisa começava a arrastar...
— Taque! Falhou a carambola.
— Não dou meia! - murmurou com rancor.
E chegando-se a Basílio, a dar giz no taco:
— Ouve cá...
Falou-lhe ao ouvido.
— Como um anjo, menino! - suspirou Basílio.
Foi Juliana que na manhã seguinte veio acordar Luísa, dizendo à porta da alcova com a voz abafada, em confidência:
— Minha senhora! Minha senhora! É um criado com esta carta; diz que vem do hotel.
Foi abrir uma das janelas, em bicos de pés; e voltando à alcova com uma cautela misteriosa:
— E está à espera da resposta, está à porta.
Luísa, estremunhada, abriu o largo envelope azul com um monograma - dois BB, um púrpura, outro ouro, sob uma coroa de conde.
— Bem, não tem resposta.
— Não tem resposta - foi dizer Juliana ao criado, que esperava encostado ao corrimão, fumando um grande charuto, e cofiando as suíças pretas.
— Não tem resposta? Bem, muito bom dia. - Levou o dedo secamente à aba do coco, e desceu, gingando.
Perfeito homem, foi pensando Juliana, pela escada da cozinha.
— Quem bateu, Sra. Juliana? - perguntou-lhe logo a cozinheira.
Juliana resmungou:
— Ninguém; um recado da modista.
Desde pela manhã a Joana achava-lhe o ar esquisito. Sentira-a desde às sete horas varrer, espanejar, sacudir, lavar as vidraças da sala de jantar, arrumar as louças no aparador. E com uma azáfama! Ouvira-a cantar a Carta adorada, ao mesmo tempo que os canários, nas varandas abertas, chilreavam estridentemente ao sol. Quando veio tomar o seu café à cozinha não palestrou como de costume; parecia preocupada e ausente.
Joana até lhe perguntou:
— Sente-se pior, Sra. Juliana?
— Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
— Como a veio tão calada...
— A malucar cá por dentro... A gente nem sempre está para grulhar.
Apesar de serem nove horas não quisera acordar a senhora. Deixa-a descansar, coitada! - disse. Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia grande do banho, no quarto; para não fazer ruído, sacudiu no corredor as saias, o vestido da véspera: e os seus olhos brilharam avidamente quando sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o bilhete que Luísa escrevera a Basílio: "Por que não vens?... Se soubesses o que me fazes sofrer!..." Teve-o um momento na mão, o beiço, o olhar fixo num cálculo agudo; por fim tornou a metê-lo na algibeira de Luísa, dobrou o vestido, foi estendê-lo com muito cuidado na causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o cuco dar horas, decidiu-se a ir dizer a Luísa, com uma voz meiga:
— São dez e meia, minha senhora!
Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio: Não pudera - escrevia ele - estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos pés dela. Compusera aquela prosa na véspera, no Grêmio, às três horas, depois de alguns rubbers de uíste, um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiçosa da ilustração. E terminava, exclamando: - "Que outros desejem a fortuna, a glória as honras, eu desejo-te a ti! Só a ti, minha pomba, porque tu és o único laço que me prende à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, juro-te que punha um termo, com uma boa bala, a esta existência inútil!" - Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito.
E Luísa
tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve, o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já não se vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar - seria verdade então o que dizia Leopoldina, que não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita? Tinha um amante, ela!
E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar fixo, repetia: "Tenho um amante!" Recordava a sala na véspera, a chama aguçada das velas, e certos silêncios extraordinários em que lhe parecia que a vida parara, enquanto os olhos do retrato da mãe de Jorge, negros na face amarela, lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas Juliana entrou com um tabuleiro de roupa passada. Eram horas de se vestir...
Que requintes teve nessa manhã! Perfumou a água com um cheiro de Lubio, escolheu a camisinha que tinha melhores rendas. E suspirava por ser rica! Queria as bretanhas e as holandas mais caras, as mobílias mais aparatosas, grossas jóias inglesas, um cupê forrado de cetim... Porque nos temperamentos sensíveis as alegrias do coração tendem a completar-se com as sensualidades do luxo; o primeiro erro que se instala numa alma até aí defendida, facilita logo aos outros entradas tortuosas - assim, um ladrão que se introduz numa casa vai abrindo sutilmente as portas à sua quadrilha esfomeada.
Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabelo em duas tranças, em roupão branco. Juliana precipitou-se logo a fechar as janelas, porque apesar de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam mais frescura! E, vendo que lhe esquecera o lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou com água-de-colônia. Servia-a com ternura. Viu-a comer muitos figos:
— Não lhe vão fazer mal, minha senhora! - exclamou quase lacrimosamente.
Andava em redor dela com um sorriso servil, sem ruído; ou defronte da mesa, com os braços cruzados, parecia admirá-la com orgulho, como um ser precioso e querido, todo seu, a sua ama! O seu olhar esbugalhado apossava-se dela.
E dizia consigo:
— "Grande cabra! Grande bêbeda!"
Luísa, depois do almoço, veio para o quarto estender-se na causeuse com o seu Diário de Noticias. Mas não podia ler. As recordações da véspera redemoinhavam-lhe na alma a cada momento, como as folhas que um vento de outono levanta a espaços de um chão tranqüilo; certas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar... E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido, sentindo aquelas reminiscências vibrarem-lhe muito tempo, docemente, nos nervos da memória. Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito, desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali, imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir tão tranqüila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela idéia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações: não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!... Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez... Estava doida, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício; ela fora por paixão... Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!... Seria tão fiel, tão discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus beijos tão estonteadores!... E enfim que lhe havia de fazer agora? Já agora!...
E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escritório. Logo ao entrar o seu olhar deu com a fotografia de Jorge - a cabeça de tamanho natural - no seu caixilho envernizado de preto. Uma comoção comprimiu-lhe o coração; ficou como tolhida - como uma pessoa encalmada de ter corrido, que entra na frieza de um subterrâneo; e examinava o seu cabelo frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas espadas encruzadas que reluziam por cima. Se ele soubesse matava. Fez-se muito pálida. Olhava vagamente em redor o casaco de veludo de trabalho dependurado num prego; a manta em que ele embrulhava os pés dobrada a um lado; as grandes folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o potezinho de tabaco, e a caixa das pistolas!... Matava-a decerto!
Aquele quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe parecia que ele ia voltar, entrar daí a bocado. Se ele viesse de repente!... Havia três dias que não recebia carta - e quando ela estivesse ali a escrever ao seu num momento o outro podia aparecer e apanhá-la!... Mas eram tolices, pensou. O vapor do Barreiro só chegava às cinco horas; e depois ele dizia na carta que ainda se demorava um mês, talvez mais...
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever na sua letra um pouco gorda:
Meu adorado Basílio.
Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que ele vinha, Era melhor não se pôr a escrever, talvez!... Ergueu-se, foi à sala devagar, sentou-se no divã; e, como se o contato daquele largo sofá e o ardor das recordações que ele lhe trazia da véspera lhe tivesse dado a coragem das ações amorosas e culpadas, voltou muito decidida ao escritório, escreveu rapidamente:
Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta...
A pena velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudi-la, como lhe tremia um pouco a mão, um borrão negro caiu no papel. Ficou toda contrariada; pareceu-lhe aquilo um mau agouro. Hesitou um momento - e coçando a cabeça, os cotovelos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fora o patamar, cantarolando a Carta Adorada. Enfim, impaciente, rasgou a folha muitas vezes em pedacinhos miúdos - e atirou-os para um caixão de pau envernizado com duas argolas de metal, que estava ao canto junto à mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papéis inúteis; chamavam-lhe "o sarcófago"; Juliana decerto, descuidara-se de o esvaziar no lixo, porque transbordava de papelada:
Escolheu outra folha, recomeçou:
Meu adorado Basílio.
Não imaginas como fiquei quando recebi tua carta, esta manhã, ao acordar. Cobri-a de beijos...
Mas o reposteiro franziu-se numa prega mole, a voz de Juliana disse discretamente:
— Está ali a costureira, minha senhora.
Luísa, sobressaltada, tinha tapado a folha de papel com a mão.
— Que espere.
E continuou:
... Que tristeza que fosse a carta e que não fosses tu que ali estivesses! Estou pasmada de mim mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de te amar. Não me julgues por isto leviana, nem penses mal de mim, porque eu desejo a tua estima, mas é que nunca deixei de te amar e ao tornar a ver-te, depois daquela estúpida viagem para tão longe, não tu superior ao sentimento que me impelia para ti, meu adorado Basílio. Era mais forte que eu, meu Basílio. Ontem, quando aquela maldita criada me veio dizer que tu te vinhas despedir, Basílio, fiquei como morta; mas quando vi que não, nem eu sei, adorei-te! E se tu me tivesses pedido a vida dava-ta, porque te amo, que eu mesma, me estranho... Mas para que foi aquela mentira, e para que vieste tu? Mau! Tinha vontade de te dizer adeus para sempre, mas não posso, meu adorado Basílio! É superior a mim. Sempre te amei, e agora que sou tua, que te pertenço corpo e alma, pareço-me que te amo mais, se é possível...
— Onde está ela? Onde está ela? - disse uma voz na sala.