Authors: Eça de Queirós
Enfim, com grande satisfação de Jorge, às quatro horas os homens desceram o caixão. A vizinhança estava pelas portas. O Paula, mesmo por fanfarronada, disse com dois dedos adeus ao esquife, murmurando:
— Boa viagem!
Jorge em cima, ao sair, perguntou a Joana:
— E você não tem medo de ficar aqui só?
— Eu não, meu senhor. Quem vai não volta!
Tinha medo, com efeito; mas preparava-se a passar a noite com o Pedro, e batia-lhe o coração de alegria de "terem a casa por sua" até de manhã, e de se poderem rolar amorosamente, como fidalgos, por cima do divã da sala.
Jorge voltou com Sebastião para casa, e apenas entrou no quarto, onde Luísa estava deitada:
— Tudo pronto - disse, esfregando as mãos. - Lã vai para o Alto de São João, devidamente acondicionada. Per omnia saecula soeculorum!
A tia Joana, que estava à cabeceira de Luísa, acudiu:
— Ai, quem lá vai, lá vai... Mas boa mulher não era ela!
— Era um bom estafermo - disse Jorge. - Esperemos que a esta hora esteja a ferver na caldeira de Pero Botelho. Não é verdade, tia Joana?
— Jorge! - fez Luísa repreensivamente. E julgou dever rezar-lhe baixo dois padre-nossos por alma.
Foi tudo o que a terra deu na sua morte àquela que ia rolando a essa hora, ao trote de duas velhas éguas, para a vala dos pobres, e que fora na vida Juliana Couceiro Tavira!
No dia seguinte Luísa estava melhor; falaram mesmo, com grande desconsolação da tia Joana, em voltar para casa. Sebastião não dizia nada, mas quase desejava secretamente que uma convalescença a retivesse ali semanas indefinidas. Ela parecia tão agradecida! Tinha olhares tão reconhecidos, que só ele compreendia! E era tão feliz tendo-a ali e a Jorge na sua casa! Conferenciava com a tia Vicência sobre o jantar; andava pelos corredores e pela sala com respeito, quase em bicos de pés, como se a presença dela santificasse a casa; enchia os vasos de camélias e violetas; sorria beatamente ao ver Jorge, à sobremesa, saborear e gabar o seu velho conhaque; sentia alguma coisa de bom acalentá-lo como um manto acolchoado e macio; e já pensava que, quando ela partisse, tudo lhe pareceria mais frio, e com uma tristeza de ruína!
Mas daí a dois dias voltaram para casa.
Luísa ficou muito agradada com a criada nova. Fora Sebastião que a arranjara. Era uma rapariguita asseadinha e branca, com grandes olhos bonitos e pasmados, um ar amorável; chamava-se Mariana; e foi logo correndo dizer a Joana que morria pela senhora! Tinha uma carinha de anjo! Que linda que era!
Jorge logo nessa manhã mandou os dois baús de Juliana à tia Vitória.
Luísa, quando ele saiu à tardinha, fechou-se no quarto, com a carteirinha de Juliana, correu os transparentes por precaução, acendeu uma vela, e queimou as cartas. As mãos tremiam-lhe; e via, com os olhos marejados de lágrimas, a sua vergonha, a sua escravidão irem-se, dissiparem-se num fumo alvadio! Respirou completamente! Enfim! E fora Sebastião, aquele querido Sebastião!
Foi então à sala, à cozinha, ver a casa: tudo lhe pareceu novo, a sua vida cheia de doçura; abriu todas as janelas; experimentou o piano; rasgou mesmo em pedaços, por superstição, a música da Medjé, que lhe dera Basílio; conversou muito com a Mariana; e saboreando o seu caldo de galinha de convalescente, com a face alumiada de felicidade:
— "Que bem que vou passar agora!" - pensava.
Quando sentiu no corredor os passos de Jorge que entrava, correu, deitou-lhe os braços ao pescoço, e com a cabeça no ombro dele:
— Estou tão contente hoje! E se tu soubesses, é tão boa rapariga a Mariana!
Mas nessa noite a febre voltou. Julião, de manhã achou-a pior. Crescimentos... - disse descontente.
Estava receitando, quando D. Felicidade entrou, muito excitada. Ficou toda surpreendida de ver Luísa doente; e debruçando-se sobre ela, disse-lhe logo ao ouvido:
— Tenho que te contar!
Apenas Jorge e Julião saíram, desabafou, sentada aos pés da cama - com uma voz ora baixa pela gravidade da confidência, ora aguda pelo ímpeto da indignação:
Tinha sido roubada! Indignamente roubada! O homem que mandara a Tui, o grande ladrão, tinha escrito à Gertrudes, à criada, que não estava resolvido a voltar a Lisboa; que a mulher de virtude mudara de povoação; que ele não queria saber mais desse negócio e que até o achava esquisito; que oferecia o seu préstimo em Tui - tudo isto numa boa letra de escrevente público, num português horrível - e do dinheiro nem palavra!
— Que te parece o mariola? Oito moedas! Eu, se não fosse pela vergonha, ia direita à policia... Ai! Os galegos pra mim acabaram! Por isso o Conselheiro não se chegava ao rego! Pudera! A mulher nunca lançou a sorte!... - Porque se já não acreditava na honestidade dos galegos, não perdera a fé no poder das bruxas.
Que ela não era pelas oito moedas! Era pelo ferro! E depois, quem sabe onde estaria agora a mulher! Ai, era de endoidecer!... Que te parece, hem?
Luísa encolheu os ombros, muito abafada na roupa, as faces escarlates, cerravam-lhe os olhos numa sonolência pesada: D. Felicidade aconselhou-lhe vagamente um suadouro, suspirando; e, como Luísa não lhe podia dar consolações, saiu para ir à Encarnação desabafar com a Silveira.
Nessa madrugada Luísa piorou. A febre recrudescera. Jorge inquieto, vestiu-se à pressa, às nove horas da manhã, foi buscar Julião. Descia a escada rapidamente, abotoando ainda o paletó, quando o carteiro subia, tossindo o seu catarro.
— Cartas? - perguntou Jorge.
— Uma para a senhora - disse o homem. - Flá de ser para a senhora...
Jorge olhou o envelope; tinha o nome de Luísa, vinha da França.
— De quem diabo é isto? - pensou. Meteu-a no bolso do paletó, e saiu.
Daí a meia hora voltava com Julião, num trem.
Luísa dormitava, amodorrada.
— É preciso cautela... Vamos a ver... - murmurou Julião coçando devagar a cabeça, enquanto do outro lado do leito Jorge o olhava ansiosamente.
Receitou e ficou para almoçar com Jorge. Estava um dia frio e pardo. A Mariana, abafada num casabeque, servia com os dedos vermelhos, inchados de frieiras. E Jorge sentia-se entristecer, como se toda a névoa do ar se lhe fosse lentamente depositando e condensando na alma.
A que se podia atribuir semelhante febre? - dizia, muito desconsolado. Tão extraordinário! Havia seis dias, ora melhor, ora pior...
— Estas febres vêm por tudo - replicou Julião, partindo tranqüilamente uma torrada - Às vezes por uma corrente de ar, às vezes por um desgosto. Tenho eu, por exemplo, um caso curioso: um sujeito, um Alves, que esteve para falir, e que viveu, coitado, durante dois meses em torturas. Há duas semanas, por um golpe de fortuna - a velhaca às vezes tem destes caprichos - arranjou todos os seus negócios, viu-se livre. Pois senhor, desde então tem uma febre assim, tortuosa, complexa, com sintomas disparatados... O que é? É que a excitação nervosa abateu, e a felicidade trouxe-lhe uma revolução no sangue. Pode muito bem dar à casca. Faz então a falência geral, a grande, aquela em que o credor é implacável, saca à vista, e... per omnia saecula!
Ergueu-se, e acendendo o cigarro:
— Em todo o caso um repouso absoluto. E necessário ter-lhe o espírito em algodão em rama. Nada de palestra, nada de frases, e se tiver sede, limonada. Até logo!
E saiu, calçando as luvas pretas que usava agora desde que pertencia ao posto médico.
Jorge voltou à alcova: Luísa ainda dormitava. Mariana, sentada ao pé numa cadeirinha baixa, com o rostinho muito triste, não tirava de Luísa os seus grandes olhos vagamente espantados.
— Tem estado muito inquieta - murmurou.
Jorge apalpou a mão de Luísa que ardia, conchegou-lhe a roupa. Beijou-a devagarinho na testa, foi cerrar as portas da janela, defronte da alcova. - E passeando no escritório, voltavam-lhe as palavras de Julião: "São febres que vêm por um desgosto!" Pensava na história do negociante, recordava aquele estado de abatimento e de fraqueza de Luísa que o preocupava tanto, ultimamente, tão inexplicável! Ora, tolices! Desgosto de quê? Em casa de Sebastião estivera tão animada! Nem a morte da outra lhe fizera abalo! - De resto acreditava pouco nas febres de desgosto! Julião tinha uma Medicina literária. Pensou mesmo que seria mais prudente chamar o velho Dr. Caminha...
Ao meter a mão no bolso, então, os seus dedos encontraram uma carta: era a que o carteiro lhe dera, de manhã, para Luísa. Tornou a examiná-la com curiosidade; o sobrescrito era banal, como os que há nos cafés ou nos restaurantes; não conhecia a letra; era de homem, vinha da França... Atravessou-o um desejo rápido de a abrir. Mas conteve-se, atirou-a para cima da mesa, embrulhou devagar um cigarro.
Voltou à alcova. Luísa permanecia na sua modorra: a manga do chambre arregaçada descobria o braço mimoso, com a sua penugem loura; a face escarlate fazia as pestanas longas pousavam pesadamente, no adormecimento das pálpebras finas; um anel do cabelo caíra-lhe sobre a testa, e pareceu a Jorge adorável e tocante com aquela cor, a expressão da febre. Pensou, sem saber por que, que outros a deveriam achar linda, desejá-la, dizer-lho, se pudessem... Para que lhe escreviam da França? Quem?
Voltou ao escritório, mas aquela carta sobre a mesa irritava-o: quis ler um livro, atirou-o logo impaciente; e pôs-se a passear, torcendo muito nervoso o forro das algibeiras.
Agarrou então a carta, quis ver, através do papel delgado do envelope; os dedos, mesmo irresistivelmente, começaram a rasgar um ângulo do sobrescrito. Ah! Não era delicado aquilo!... Mas a curiosidade, que governava o seu cérebro, sugeriu-lhe toda a sorte de raciocínios, com uma tentação persuasiva: - estava doente, e podia ter alguma coisa urgente; se fosse uma herança? Depois ela não tinha segredos, e então em França! Os seus escrúpulos eram pueris! Dir-lhe-ia que a abrira por engano. E se a carta contivesse o segredo daquele desgosto, do desgosto das teorias de Julião!... Devia abri-la então para a curar melhor!
Sem querer achou-se com a carta desdobrada na mão. Num relance ávido devorou-a. Mas não compreendeu bem; as letras embrulhavam-se; chegou-se à janela, releu devagar:
Minha querida Luísa.
Seria longo explicar-te, como só antes de ontem em Nice - de onde cheguei esta madrugada a Paris - recebi a tua carta que pelos carimbos vejo que percorreu toda a Europa atrás de mim. Como já lá vão dois meses e meio que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não precisas do dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda o telegrama e tem-lo aí em dois dias. Veio pela tua carta que não acreditaste nunca que a minha partida fosse motivada por negócios. Es bem injusta. A minha partida não te devia ter tirado, como tu dizes, 'todas as ilusões sobre o amor', porque foi realmente quando saí de Lisboa que percebi quanto te amava, e não há dias, acredita, em que me não lembre do Paraíso. Que boas manhãs! Passaste por lá por acaso alguma outra vez? Lembra-te do nosso lanche? Não tenho tempo para mais. Talvez em breve volte a Lisboa. Espero ver-te, porque sem ti Lisboa é para mim um desterro.
Um longo beijo do
Teu do C.
Basílio.
Jorge dobrou o papel, lentamente, em duas, em quatro dobras, atirou-o para cima da mesa, disse alto:
— Sim, senhor! Bonito!
Encheu o cachimbo de tabaco maquinalmente, com os olhos vagos, os beiços a tremer: deu alguns passos incertos pelo escritório: - de repente arremessou o cachimbo que despedaçou um vidro da janela, bateu com as mãos desvairado, e atirando-se de bruços para cima da mesa, rompeu a chorar, rolando a cabeça entre os braços, mordendo as mangas, batendo com os pês, louco!
Ergueu-se subitamente, agarrou a carta, ia com ela à alcova de Luísa. Mas a lembrança das palavras de Julião imobilizou-o: "Que esteja sossegada, nada de frases, nenhuma excitação!" Fechou a carta numa gaveta, meteu a chave na algibeira. E de pé, a tremer, com os olhos raiados de sangue, sentia idéias insensatas alumiarem-lhe bruscamente o cérebro, como relâmpagos numa tormenta - matá-la, sair de casa, abandoná-la, fazer saltar os miolos...
Mariana bateu ligeiramente à porta, disse-lhe que a senhora o chamava. Uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça; fitava a Mariana, estúpido, batendo as pálpebras:
— Já vou - disse com a voz rouca.
Ao passar na sala, diante do espelho oval, ficou pasmado do seu rosto manchado, envelhecido. Foi correr uma toalha molhada pela face, alisou o cabelo; e ao entrar na alcova, ao vê-la, com os seus grandes olhos dilatados onde a febre reluzia, teve de se agarrar à barra do leito, porque sentiu, em redor, as paredes oscilarem como lonas do vento.
Mas sorriu-lhe:
— Como estás?
— Mal - murmurou ela debilmente.
Chamou-o para o pé de si com um gesto muito fatigado.
Ele veio, sentou-se sem a olhar.
— Que tens? - disse ela chegando o rosto para ele. - Não te aflijas. - E tomou a mão que ele pousara à beira do leito.
Jorge, com um repelão seco, sacudiu a mão dela, ergueu-se bruscamente com os dentes cerrados; sentia uma cólera brutal; ia-se, com medo de si, de um crime, quando ouviu a voz de Luísa, arrastando-se, numa lamentação:
— Por que, Jorge? Que tens?...
Voltou-se; viu-a meio erguida com os olhos abertos para ele, uma angústia no rosto; e duas lágrimas caíam-lhe, silenciosamente.
Atirou-se de joelhos, agarrou-lhe as mãos, aos soluços.
— Que é isto? - exclamou a voz de Julião à porta da alcova.
Jorge, muito pálido, ergueu-se devagar.
Julião levou-o para a sala, e cruzando terrivelmente os braços diante dele:
— Tu estás doido? Pois tu sabes que ela está num estado daqueles, e vais-te pôr a fazer-lhe cenas de lágrimas?
— Não me pude conter...
— Estoura. Eu estou a cortar-lhe a febre por um lado, e tu a dar-lha por outro? Estás doido!
Estava realmente indignado. Interessava-se por Luísa como doente. Desejava muito curá-la; e sentia uma satisfação em exercer o domínio de pessoa necessária naquela casa, onde as suas visitas tinham tido sempre uma atitude dependente; mesmo agora, ao sair, não se esquecia de oferecer negligentemente um charuto a Jorge.
Jorge foi heróico durante toda essa tarde. Não podia estar muito tempo na alcova de Luísa, a desesperação trazia-o num movimento contraditório; mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, conchegava-lhe a roupa com as mãos trêmulas; e ela dormitava, ficava imóvel a olhá-la feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e imoral, como para lhe surpreender no rosto vestígios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe nalgum sonho da febre murmurar um nome ou uma data; e amava-a mais desde que a supunha infiel, mas de um outro amor, carnal e perverso. Depois ia-se fechar no escritório, e movia-se ali entre as paredes estreitas, como um animal numa jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o sem cessar: Como tinha sido? Onde era o Paraíso? Havia uma cama? Que vestido levava ela? O que lhe dizia? Que beijos dava?