O Primo Basílio (50 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Julião condescendeu logo. Até estimava! E Sebastião desceu correndo, para ir a casa do Dr. Caminha.

Luísa, que saíra um momento do seu torpor, sentiu-os falar baixo. A sua voz extinta chamou Jorge:

— Cortaram-me o cabelo... - murmurou tristemente.

— É para te fazer bem - disse-lhe Jorge, quase tão agonizante como ela. - Cresce logo. Até te vem melhor...

— Ela não respondeu; duas lágrimas silenciosas, correram-lhe pelos cantos dos olhos.

Devia ser a última sensação; a prostração comatosa ia-a imobilizando, apenas a sua cabeça rolava num movimento doce e vagaroso sobre o travesseiro, gemendo sempre com um cansaço triste; a pele empalidecia como um vidro de janela, por trás do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo os ruídos da rua que começavam não a impressionavam, como se fossem muito distantes e abafados em algodão.

Ao meio-dia D. Felicidade apareceu. Ficou petrificada quando a viu tão mal; e ela que a vinha buscar para irem à Encarnação, talvez às lojas! Tirou logo o chapéu, instalou-se; fez arranjar a alcova, tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam, compor a cama - porque não havia pior para um doente que desarranjo no quarto; e muito corajosamente animava Jorge.

Uma carruagem parou à porta. Era o Dr. Caminha, enfim!... Entrou atabafado no seu cachenê de quadrados verdes e pretos queixando-se muito do frio; - e tirando devagar as grossas luvas de casimira, que pôs dentro do chapéu metodicamente, adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado, acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito coladas ao crânio pela escova.

Julião e ele ficaram sós na alcova.

No quarto os outros esperavam calados, ao pé de Jorge, pálido como cera, com os olhos vermelhos como carvões.

— Vai-se-lhe pôr um cáustico na nuca - veio dizer Julião.

Jorge devorava com o olhar ansioso o Dr. Caminha, que se pusera a calçar tranqüilamente as suas luvas de casimira, dizendo:

— Vamos a ver com o cáustico. Não está bem... Mas há ainda pior. E eu volto, meu amigo, eu volto.

O cáustico foi inútil. Não o sentia, imóvel e branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe de repente nos nervos da face como vibrações fugitivas.

— Está perdida - disse Julião baixo a Sebastião.

D. Felicidade ficou muito aterrada, falou logo nos sacramentos.

— Para quê? - resmungou Julião impaciente.

Mas D. Felicidade declarou que tinha escrúpulos, que era um pecado mortal; e chamando Jorge para o vão da janela, toda trêmula:

— Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar nos sacramentos...

Ele murmurava como assombrado:

— Os sacramentos!

Julião chegou-se bruscamente, e quase zangado:

— Nada de tolices! Qual sacramentos! Para quê? Ela nem ouve, nem compreende, nem sente. E necessário deitar-lhe outro cáustico, talvez ventosas, e é o que é! Isso é que são os sacramentos!

Mas D. Felicidade escandalizada, muito abalada, começou a chorar. Esqueciam Deus, e em Deus é que está o remédio! - dizia, assoando-se com estrondo.

— Pelo que Deus faz por mim... - exclamou Jorge, saindo do seu torpor. E batendo as mãos, como revoltado por uma injustiça: - Por que realmente, que fiz eu para isto? Que fiz eu?...

Julião ordenara outro cáustico. Havia agora na casa um movimento alucinado. Joana entrava de repente com um caldo inútil que ninguém pedira, os olhos muito vermelhos de chorar. Mariana soluçava pelos cantos. D. Felicidade ia, vinha pelo quarto, refugiando-se na sala para rezar, fazendo promessas, lembrando que se chamasse o Dr. Barbosa, o Dr. Barral.

E Luísa no entanto estava imóvel; uma cor macilenta ia-lhe dando às faces tons cavados e rígidos.

Julião extenuado pediu um cálice de vinho, uma fatia de pão. Lembraram-se então que desde a véspera não tinham comido, e foram à sala de jantar onde Joana, sempre lavada em lágrimas, serviu uma sopa, e ovos. Mas não achava as colheres, nem os guardanapos; murmurava rezas, pedia desculpa; enquanto Jorge, com os olhos inchados, fitos na borda da mesa, a face contraída, fazia dobras na toalha.

Depois de um momento pousou devagarinho a colher, desceu ao quarto. Mariana estava sentada aos pés do leito; Jorge disse-lhe que fosse servir os senhores; e apenas ela saiu, deixou-se cair de joelhos, tomou uma das mãos de Luísa, chamou-a baixo; depois mais forte:

— Escuta-me. Ouve, pelo amor de Deus. Não estejas assim, faze por melhorar. Não me deixes neste mundo, não tenho mais ninguém! Perdoa-me. Dize que sim. Faze sinal que sim ao menos. Não me ouve, meu Deus!

E olhava-a ansiosamente. Ela não se movia.

Ergueu então os braços ao ar numa desesperação alucinada.

— Sabes que creio em ti, meu Deus. Salva-a! Salva-a! - E arremessava a sua alma para as alturas: - Ouve, meu Deus! Escuta-me! Sê bom!

Olhava em roda, esperando um movimento, uma voz, um acaso, um milagre! Mas tudo lhe pareceu mais imóvel. A face lívida cavava-se; o lenço que lhe envolvia a cabeça desarranjara-se, via-se o crânio rapado, de uma cor ligeiramente amarelada. Pôs-lhe então a mão na testa, hesitando, com medo; pareceu-lhe que estava fria! Abafou um grito, correu para fora do quarto, e deu com o Dr. Caminha que entrava, tirando pausadamente as luvas.

— Doutor! Está morta! Veja. Não fala, está fria...

— Então! Então! - disse ele. - Nada de barulho, nada de barulho!

Tomou o pulso de Luísa, sentiu-o fugir sob os dedos, como a vibração expirante de uma corda.

Julião veio logo. E concordou com o Dr. Caminha que as ventosas eram inúteis.

— Já as não sente - disse o doutor sacudindo o tabaco dos dedos.

— Se se lhe desse um copo de conhaque?... - lembrou de repente Julião. E vendo o olhar espantado do doutor: - Às vezes estes sintomas de coma não querem dizer que o cérebro esteja desorganizado; podem ser apenas a inação da força nervosa exausta. Se a morte é irremediável não se perde nada; se é apenas uma depressão do sistema nervoso, pode-se salvar...

O Dr. Caminha, com o beiço descaído, oscilava incredulamente a cabeça:

— Teorias! - murmurou.

— Nos hospitais ingleses... - começou Julião.

O Dr. Caminha encolheu os ombros com desprezo.

— Mas se o doutor lesse... - insistiu Julião.

— Não leio nada! - disse o Dr. Caminha com força - tenho lido demais! Os livros são os doentes... - E curvando-se, com ironia: - Mas se o meu talentoso colega quer fazer a experiência...

— Um copo de conhaque ou de aguardente! - pediu Julião à porta.

E o Dr. Caminha sentou-se comodamente "para gozar o fracasso do talentoso colega".

Levantaram Luísa; Julião fez-lhe engolir o conhaque; quando a deitaram ficou na mesma imobilidade comatosa; o Dr. Caminha tirou o relógio, viu as horas, esperou; havia um silêncio ansioso; enfim o doutor ergueu-se, tomou-lhe o pulso, apalpou a frialdade crescente das extremidades; e indo buscar silenciosamente o chapéu começou a calçar as luvas.

Jorge foi com ele até à porta:

— Então, doutor? - disse, agarrando-lhe com uma força desvairada o braço.

— Fez-se o que se pôde - disse o velho, encolhendo os ombros.

Jorge ficou estúpido no patamar, vendo-o descer. As suas passadas vagarosas nos degraus caíam-lhe com uma percussão medonha no coração. Debruçou-se no corrimão, chamou-o baixo. O doutor parou, levantou os olhos; Jorge pôs as mãos para ele, com uma ansiedade humilde:

— Então não é possível mais nada?

O doutor fez um gesto vago, indicou o céu.

Jorge voltou para o quarto, encostando-se às paredes. Entrou na alcova, atirou-se de joelhos aos pés da cama, e ali ficou com a cabeça entre as mãos num soluçar baixo e continuo.

Luísa morria: os seus braços tão bonitos, que ela costumava acariciar diante do espelho, estavam já paralisados; os seus olhos, a que a paixão dera chamas e a voluptuosidade lágrimas, embaciavam-se como sob a camada ligeira de uma pulverização muito fina.

D. Felicidade e Mariana tinham acendido uma lamparina a uma gravura de Nossa Senhora das Dores, e de joelhos rezavam.

O crepúsculo triste descia; parecia trazer um silêncio funerário.

A campainha, então, tocou discretamente; e daí a momentos apareceu a figura do Conselheiro Acácio.

D. Felicidade ergueu-se logo; e vendo as suas lágrimas, o Conselheiro disse lugubremente:

— Venho cumprir o meu dever, ajudar-lhes a passar este transe!

Explicou que encontrara por acaso o bom Dr. Caminha, que lhe contara a fatal ocorrência! Mas muito discretamente não quis entrar na alcova. Sentou-se numa cadeira, colocou melancolicamente o cotovelo sobre o joelho, a testa sobre a mão, dizendo baixo a D. Felicidade:

— Continue as suas orações. Deus é imperscrutável em seus decretos.

Na alcova, Julião estivera tomando o pulso de Luísa; olhou então Sebastião, fez-lhe o gesto de alguma coisa que voa e desaparece... Aproximaram-se de Jorge, que não se movia, de joelhos, com a face enterrada no leito:

— Jorge - disse baixinho Sebastião.

Ele levantou o rosto desfigurado, envelhecido, os cabelos nos olhos, as olheiras escuras.

— Vá, vem - disse Julião. E vendo o espanto do seu olhar: - Não, não está morta, está naquela sonolência... Mas vem.

Ele ergueu-se, dizendo com mansidão:

— Pois sim, eu vou. Estou bem... Obrigado.

Saiu da alcova.

O Conselheiro levantou-se, foi abraçá-lo com solenidade:

— Aqui estou, meu Jorge!

— Obrigado, Conselheiro, obrigado.

Deu alguns passas pelo quarto; os seus olhos pareciam preocupar-se com um embrulho que estava sobre a mesa; foi apalpá-lo; desapertou as pontas, e viu os cabelos de Luísa. Ficou a olhá-los, erguendo-os, passando-os de uma das mãos para outra, e disse com os beiços a tremer:

— Fazia tanto gosto neles, coitadinha!

Tornou a entrar na alcova. Mas Julião tomou-lhe o braço, queria-o afastar do leito. Ele debatia-se docemente; e, como uma vela ardia sobre a mesinha ao pé da cabeceira, disse, mostrando-a:

— Talvez a incomode a luz...

Julião respondeu comovido:

— Já não a vê, Jorge!

Ele soltou-se da mão de Julião, foi debruçar-se sobre ela; tomou-lhe a cabeça entre as mãos com cuidado para a não magoar, esteve a olhá-la um momento; depois pousou-lhe sobre os lábios frios um beijo, outro, outro, murmurava:

— Adeus! Adeus!

Endireitou-se, abriu os braços, caiu no chão.

Todos correram. Levaram-no para a chaise longue.

E enquanto D. Felicidade num pranto aflito fechava os olhos de Luísa, o Conselheiro, com o chapéu sempre na mão, cruzava os braços, e oscilando a sua calva respeitável, dizia a Sebastião:

— Que profundo desgosto de família!

Capítulo dezesseis

 

Depois do enterro de Luísa, Jorge despediu as criadas, foi para casa de Sebastião.

Nessa noite pelas nove horas o Conselheiro Acácio, muito abafado, descia o Moinho de Vento, quando encontrou Julião, que vinha de ver um doente na Rua da Rosa. Foram andando juntos, conversando de Luísa, do enterro, da aflição de Jorge.

— Pobre rapaz! Aquilo é que é sofrer! - disse Julião compadecido.

— Era uma esposa modelo!... - murmurou o Conselheiro.

De resto, disse, vinha justamente de casa do bom Sebastião, mas não pudera ver o seu Jorge; tinha-se estirado sobre a cama, e dormia profundamente. E acrescentou:

— Ultimamente lia eu que aos grandes golpes sucedem sempre sonos prolongados. Assim, por exemplo, Napoleão depois de Waterloo, depois do grande desastre de Waterloo!

E passado um momento, continuou:

— É verdade. Fui ver o nosso Sebastião... Fui mostrar-lhe... - E interrompendo-se, parando: - Porque eu entendi que era o meu dever dedicar um tributo à memória da infeliz senhora. Era o meu dever, e não me eximia a ele! E estimo tê-lo encontrado, porque quero saber a sua a opinião conscienciosa e desassombrada.

Julião tossiu, e perguntou:

— É um necrológio?

— É um necrológio.

E o Conselheiro, apesar de não achar próprio, na sua posição, o entrar em cafés públicos, lembrou a Julião que poderiam descansar um momento no Tavares, se não estivesse muita gente, e ele poderia ler-lhe "a produção".

Espreitaram.

Estavam apenas, a uma mesa, dois velhos calados defronte dos seus cafés, com os chapéus na cabeça, apoiados a bengalas de cana-da-Índia. O moço dormitava ao fundo. Uma luz crua e intensa enchia a sala estreita.

— Há um silêncio propicio - disse o Conselheiro.

Ofereceu um café a Julião; e tirando então do bolso uma folha de papel pautado, murmurou: - Infeliz senhora! - Inclinou-se para Julião, e leu:

NECROLÓGIO

À MEMÓRIA DA SENHORA D. LUÍSA MENDONÇA DE BRITO CARVALHO

Rosa de amor, rosa purpúrea e bela,

Quem entre os goivos te esfolhou na campa?

— É do imortal Garrett! - E continuou com uma voz lenta e lúgubre:

— "... Mais um anjo que subiu ao céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou maldesabrochada para as trevas do túmulo..."- Olhou Julião para solicitar a sua admiração, e vendo-o curvado a remexer o seu café, prosseguiu com entonações mais funerárias:

— "Detendo-vos, e olhai a terra fria! Ali jaz a casta esposa tão cedo arrancada às carícias do seu talentoso cônjuge. Ali soçobrou, como baixei no escarcéu da costa, a virtuosa senhora, que em sua folgazã natureza era o encanto de quantos tinham a honra de se aproximar do seu lar! Por que soluçais?"

— Um café, ó Antônio! - bradou a voz rouca de um sujeito grosso, de jaquetão, que se sentou ao pé, pondo com ruído a bengala sobre a mesa e deitando o chapéu para o cachaço.

O Conselheiro olhou-o de lado, com rancor. E baixando a voz:

— "... Não soluceis! Que o anjo se não pertence à terra pertence ao céu!..."

— O Sô Guedes esteve já por aí? - perguntou a voz rouca.

O criado disse detrás do balcão, limpando com uma rodinha as travessas de metal:

— Ainda não, senhor D. José!

— "... Ali" - continuou o Conselheiro - "seu espírito, librando-se nas cândidas asas, entoa louvores ao Eterno! E não cessa de pedir ao Onipotente mercês e favores para derramar sobre a cabeça do dileto esposo, que um dia, não duvideis, a encontrará nas regiões celestes, pátria das almas de tão subido quilate..." - E a voz do Conselheiro aflautava-se para indicar aquela ascensão paradisíaca.

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