Authors: Eça de Queirós
Luísa vendo-o às vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a maneira que Jorge adotara de falar dela com uma veneração irônica; chamava-lhe "a ilustre D. Juliana, a minha ama e senhora!" Se faltava um guardanapo ou um copo, fingia-se espantado: "Como! a D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!" Tinha gracejos que gelavam Luísa.
— A que sabia o filtro que ela te deu? Era bom?
Luísa agora, diante dele, já nem se atrevia a falar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos malignos, os apartes: "Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara que estás com vontade de lho atirar!" E, receando as suspeitas dele, querendo mostrar-se independente, começou na sua presença, a falar a Juliana com uma dureza brusca, muito afetada. A pedir-lhe água, uma faca, dava à voz inflexões de um rancor postiço.
Juliana, muito fina, tinha percebido tudo, e suportava calada. Queria evitar toda a questão que a perturbasse no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas noites em que não podia dormir com aflições asmáticas, punha-se a pensar com terror - se fosse expulsa daquela casa, para onde iria? Para o hospital!
Tinha por isso medo de Jorge.
— Ele está morto por me pilhar em desleixo grosso, e descartar-se de mim - dizia ela à tia Vitória -, mas não lhe hei de dar esse gosto, ao boi manso!
E Luísa, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar a fazer todo o serviço, com zelo, aparentemente; e todavia às vezes não podia, vencida pela doença; tinha flatos que a faziam cair numa cadeira, arquejando, com as mãos no coração. Mas reagia. Uma ocasião mesmo vendo Luísa a passar um espanejador pelas consolas da sala, zangou-se:
— A senhora faz favor de se não meter no meu serviço? Eu ainda posso! Ainda não estou na cova!
Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite.
— Com o meu corpo o pago - dizia ela a Joana -, que trabalho como uma negra! Arraso-me!
Um dia, porém, que Jorge se irritara mais com a figura amarelada de Juliana, e que estava nervoso, ao achar à noite o jarro vazio e o lavatório sem toalha, enfureceu-se desproporcionadamente.
— Não estou para aturar estes desleixos! Irra! - gritou.
Luísa veio logo, inquieta, desculpar Juliana.
Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente e com a voz um pouco trêmula:
— Perdão! Esquecia-me que a pessoa de Juliana é sagrada! Eu mesmo vou buscar água!
Luísa então zangou-se: se havia de estar sempre com aqueles remoques, era mandar a criada embora por uma vez! Imaginava talvez que ela amava de paixão Juliana? Se a conservava é porque era uma boa criada. Mas se ela se tornava a causa de maus humores, de questões, se ele lhe ganhara tamanho ódio, bem, então que se fosse! Era uma seca aquela ironia constante... Jorge não respondeu.
E durante a noite Luísa, sem dormir, pensava que aquilo não podia durar! Estava farta! Aturar a mulher, a sua tirania, e ouvir a todo o momento ditinhos, alusões, ah, não! Era demais! Bastava! Ele começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois bem, ela mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas, acabou-se! Se ele a metesse num convento, se separasse dela, bem! Sofreria, morreria! Tudo, menos aquele martírio reles, às picadinhas, medonho e grotesco!
— Que tens tu? - perguntou Jorge meio a dormir, sentindo-a inquieta.
— Espertina.
— Coitada! Conta cento e cinqüenta para trás! - E voltou-se, enrolando-se comodamente na roupa.
Ao outro dia Jorge levantara-se cedo. Devia encontrar-se com o Alonso, o espanhol das minas, e jantar com ele no Gibraltar. Depois de vestido foi à sala de jantar - eram dez horas - e voltou dizer a Luísa, com uma cortesia profunda, espaçando as palavras: - que não estava a mesa posta! Que as chávenas do chá « da véspera estavam ainda por lavar! E que a senhora D. Juliana, a ilustre senhora D. Juliana tinha saído, a seu passeio!
Eu disse-lhe ontem à noite que me fosse-me ao sapateiro... - começou Luísa, que vestia o seu roupão.
— Ah, perdão! - interrompeu Jorge muito cerimoniosamente.
— Esqueci-me outra vez que se trata de Juliana, tua ama e senhora! Perdão!
Luísa acudiu logo:
— Não. Tens razão. Tu verás! É preciso pôr um cobro...
Subiu logo à cozinha, desesperada:
— Você por que não pôs a mesa, Joana, se a outra saiu?
Mas a rapariga não ouvira sair a Sra. Juliana! Imaginara que estava para baixo, para sala! Como ela agora é que queria fazer tudo!...
Quando Joana trouxe o almoço daí a pouco Jorge veio sentar-se à mesa, torcendo muito nervosamente o bigode. Levantou-se duas vezes com um sorriso mudo para ir buscar uma colher, o açucareiro. Luísa via-lhe os músculos da face contraídos: mal podia comer, atarantada; a chávena, quando a erguia, tremia-lhe mão; com os olhos baixos espreitava Jorge às furtadelas, e o seu silêncio torturava-a.
— Tu falaste ontem que ias jantar fora hoje...
— Vou - disse secamente. E acrescentou: - Graças a Deus!
— Estás de bom humor!... - murmurou ela.
— Como vês!
Luísa fez-se pálida, pousou o talher; tomou o jornal para disfarçar uma lagrimazinha que lhe tremia na pálpebra; mas as letras confundiam-se, sentia pular o coração. De repente a campainha tocou. Era a outra, decerto!
Jorge, que se ia erguer, disse logo:
— Há de ser essa senhora. Ora, vou-lhe dizer duas palavras...
E ficou de pé, junto à mesa, aguçando devagar um palito.
Luísa, a tremer, levantou-se também:
— Eu vou-lhe falar...
Jorge reteve-a pelo braço, e tranqüilamente:
— Não, deixa-a vir. Deixa-me gozar!...
Luísa recaiu na cadeira, muito pálida.
Os tacões de Juliana soaram no corredor. Jorge aguçava tranqüilamente o seu palito.
Luísa então voltou-se para ele, e batendo as mãos, aflita:
— Não lhe digas nada!...
Ele fixou-a, assombrado:
— Por quê?
Juliana neste momento abriu o reposteiro.
— Então que desaforo é este, sair e deixar tudo por arrumar? - disse-lhe Luísa logo, erguendo-se.
Juliana, que vinha sorrindo, estacou à porta, petrificada: apesar de sua amarelidão, uma vaga cor de sangue espalhou-se nas feições.
— Não lhe torne acontecer semelhante coisa, ouviu? A sua obrigação é estar em casa pela manhã... - Mas o olhar de Juliana, que se cravava nela terrivelmente, emudeceu-a. Agarrou no bule com as mãos trêmulas. - Deite água neste bule, vá!
Juliana não se mexeu.
— Você não ouviu? - berrou de repente Jorge. E atirou uma punhada à mesa, que fez saltar a louça.
— Jorge! - gritou Luísa, agarrando-lhe no braço.
Mas Juliana fugira da sala, correndo.
— E logo na rua! - exclamou Jorge. - Faze-lhe as contas e que se vá. Ah! Estou farto! Nem mais um dia! Se a tomo a ver, desfaço-a! Até que enfim! Chegou-me a minha vez!
Foi buscar o paletó, muito excitado, e antes de sair, voltando à sala:
— E que se vá hoje mesmo, ouviste? Nem uma hora a mais! Há quinze dias que a trago aqui atravessada. Para a rua!
Luísa veio para o quarto quase sem se poder suster. Estava perdida! Estava perdida! Uma multidão de idéias, todas extremas e insensatas, redemoinhava no seu cérebro como um montão de folhas secas numa ventania: queria fugir, atirar-se ao rio, de noite; arrependia-se de não ter cedido ao Castro... De repente imaginou Jorge abrindo as cartas que Juliana lhe entregava, lendo: "Meu adorado Basílio!" Então uma cobardia imensa, amoleceu-lhe a alma. Correu ao quarto de Juliana, ia suplicar-lhe que lhe perdoasse, que ficasse, que a martirizasse!... E depois? Diria que a Juliana chorara, se atirara de joelhos! Mentiria, cobri-lo-ia de beijos... Era nova, era bonita, era ardente - convencê-lo-ia!
Juliana não estava no quarto. Subiu à cozinha; estava lá, sentada, com os olhos chamejantes, os braços nervosamente cruzados, numa raiva muda. Apenas viu Luísa, deu um salto sobre os calhares, e mostrando-lhe o punho, berrou:
— Olhe que a primeira vez que você me torne a falar como hoje, vai aqui tudo raso nesta casa!
— Cale-se, sua infame! - gritou Luísa.
— Você manda-me calar, sua p...! - E Juliana disse a palavra.
Mas a Joana correu, atirou-lhe pelo queixo uma bofetada que a fez cair, com um gemido, sobre os joelhos.
— Mulher! - bradou Luísa arremessando-se sobre a Joana, agarrando-a pelos braços.
Juliana, assombrada, fugiu.
— Ó Joana! Ó mulher! Que desgraça, que escândalo! - exclamava Luísa as mãos apertadas na cabeça.
— Racho-a! - dizia a rapariga com os dentes cerrados, os olhos como brasas - Racho-a!
Luísa andava em volta da mesa da cozinha, automaticamente, pálida como repetindo, toda a tremer:
— O que você foi fazer, mulher! O que você foi fazer!
A Joana, ainda toda revolvida de sua cólera, com o rosto manchado de vermelho, remexia furiosamente as panelas.
— E se ela me diz uma palavra, acabo-a, aquela bêbeda! Acabo-a!
Luísa desceu ao quarto. No corredor saiu-lhe Juliana, com a cuia à banda, as dedadas escarlates na face, medonha.
— Ou aquela desavergonhada vai já para a rua - gritou ela - ou eu vou-me pôr lá embaixo na escada, e quando o seu homem vier, mostro-lhe tudo!...
— Pois mostre, faça o que quiser! - disse Luísa, passando, sem a olhar.
Fora uma desesperação, um ódio que a tinham decidido. Mais valia acabar por uma vez!...
Sentia então como um alívio doloroso, em ver o fim do seu longo martírio! Havia meses que ele durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que tinha sofrido, as infâmias em que chafurdara e as humilhações a que descera, vinha-lhe um tédio de si mesma, um nojo imenso da vida. Parecia-lhe que a tinham sujado e espezinhado; que nela nem havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado, como um trapo que foi pisado por uma multidão, sobre a lama. Não valia a pena lutar por uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação, a morte uma purificação maior... - E onde estava ele, o homem que a desgraçara? Em Paris, retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, governando os seus cavalos, dormindo com outras! E ela morreria ali, estupidamente! E quando lhe escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta; nem a julgara digna do meio tostão da estampilha! O que ele lhe dizia pelas terras da Pólvora acima, naquela cupê: - Dar-lhe-ia toda a sua vida, viveria à sombra das suas saias! O infame! Já tinha talvez no bolso o bilhete da passagem! Enquanto ela fora a mulher alegre, que vem, despe o corpete, mostra um lindo colo - então bem, pronto! Mas teve uma dificuldade, chorou, sofreu - ah! não, isso não! "És um belo animal que me dás um grande prazer - perfeitamente, tudo o que quiseres; mas tornas-te uma criatura dolorida que precisa consolações, talvez uns poucos de centos de mil réis - então boas noites, cá vou no paquete!" Oh, que estúpida que é a vida! Ainda bem que a deixava!
Foi-se encostar à janela. Estava um dia muito azul, muito doce. O sol punha grandes claridades de um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre a calçada. E havia no ar uma suavidade aveludada. O Paula, em chinelas de tapete, aquecia-se à porta do estanque. Então, diante do lindo ar de inverno, enterneceu-se. Todos eram felizes naquela manhã de rosas, só ela sofria, pobre dela! E ficou a olhar, como esquecida numa vaga saudade, com uma lágrima na pálpebra... De repente viu Juliana atravessar a rua, dobrar a esquina - e daí a pouco voltar com um galego, velho e pesado, que trazia o seu saco ao ombro.
Ia-se embora! - pensou Luísa. - Mandava por fora os baús! E depois? Remetia as cartas a Jorge, ou entregava-lhas ela mesma, no portal! Santo Deus! - E parecia-lhe ver Jorge aparecer no quarto, lívido, com as cartas na mão!...
Veio-lhe um terror alucinado: não queria perder o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua casa, o seu homem! Apossou-se dela a revolta da fêmea contra a viuvez; aos vinte e cinco anos ir murchar para um convento! Não, com os diabos!
Foi direita ao quarto de Juliana.
— Vem ver se lhe levo alguma coisa? - gritou logo a outra, furiosa.
Sobre a cama estava roupa branca espalhada, pelo chão botinas embrulhadas em jornais velhos.
— E ainda cá me ficam quatro camisas, dois pares de calcinhas, três pares de meias, seis punhos na lavadeira. Fica aí o rol. E quero as minhas contas!...
— Escute, Juliana, não se vá. - Mas a voz desapareceu-lhe, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
Juliana pôs-se a olhar para ela do alto, triunfando, com uma botina de duraque em cada mão.
— É mandar aquela desavergonhada embora, e está tudo acabado! - E com uma voz aguda, batendo as solas das botinas: - Fica tudo como dantes, na paz do Senhor!
Uma alegria extraordinária acendia-lhe o olhar. Vingava-se!
Fazia-a chorar! Expulsava a outra! E não perdia os seus cômodos!
— É pôr a bêbeda na rua! É pô-la na rua!
Luísa curvou os ombros, foi à cozinha devagar; os degraus da escada pareciam-lhe imensos, infindáveis. Deixou-se cair num banco, e limpando os olhos:
— Joana, venha cá, escute, você não pode continuar na casa...
A rapariga ficou a olhar para ela, espantada.
— O que a Juliana disse foi num repente... Tem estado a chorar, a arrepender-se. É a criada mais antiga. O senhor estima-a muito...
— Então a senhora manda-me embora? Então a senhora manda-me embora?
Luísa insistiu, baixo, envergonhada:
— Foi um repente, tem estado a pedir perdão...
— Eu foi para defender a senhora! - exclamou a rapariga abrindo os braços aflita.
Luísa sentiu-se indignada; e impaciente, para acabar:
— Bem, Joana, não estejamos com mais. Eu é que sou a dona da casa...
— Vou-lhe fazer as contas.
— Olha que pago este! - gritou Joana, então, desesperada. E com uma solução, batendo o pé: - Pois o senhor é que há de dizer! Eu vou dizer tudo ao senhor! Hei de lhe contar tudo o que se passou! A senhora não tem razão!...
Luísa olhava-a, estúpida. Agora era aquela! Era daquela rapariga, teimosa na sua justiça, que vinha o desastre! Era demais! Veio-lhe um terror, sobrenatural, como um espanto da consciência, e apertando as fontes nas mãos abertas: