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Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (32 page)

BOOK: O Primo Basílio
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— Minha senhora - veio dizer Joana -, é um galego com esta carta. Está à espera da resposta.

Que espanto! Era de Juliana!

Escrita em papel pautado, numa letra medonha, eriçada de erros de ortografia, dizia:

Minha senhora.

Bem sei que fui imprudente, o que a senhora deve atribuir tanto à minha desgraça como à falta de saúde, o que às vezes faz que se tenham gênios repentinos. Mas se a senhora quer que eu volte e faça o serviço como dantes - ao qual creio que a senhora não pode opor-se, terei muito gosto em ser agradável na certeza que nunca mais se falará em tal até que a senhora queira, e cumpra o que prometeu. Prometo fazer o meu serviço, e desejo que a senhora esteja por isto pois que é para bem de todos. Pois que foi gênio e naturalmente todos têm os seus repentes, e com isto não canso mais e sou

Serva muito obediente

a criada

Juliana Couceiro Tavira.

Ficou com a carta na mão, sem resolução. A sua primeira vontade foi dizer - "não!" Tornar a recebê-la, vê-la, com a sua face horrível, a cuia enorme! Saber que ela tinha no bolso a sua carta, a sua desonra, e chamá-la, pedir-lhe água, a lamparina, ser servida por ela! Não! Mas veio-lhe um terror; se recusasse irritava a criatura; Deus sabe o que faria! Estava nas mãos dela; devia passar por tudo. Era o seu castigo... Hesitou ainda um momento:

— Que sim, que venha, é a resposta.

Juliana veio com efeito às oito horas. Subiu pé ante pé para o sótão, pôs o fato de casa e as chinelas, e desceu para o quarto dos engomados, onde Joana sentada num tapete costurava, à luz do petróleo.

Joana, muito curiosa, acabrunhou-a logo de perguntas: onde estivera? O que tinha acontecido? Por que não dera notícias? - Juliana contou que fora a uma visita a uma amiga, à Calçada do Marquês de Abrantes, e que de repente lhe dera um flato, e a dor... Não quis mandar dizer, porque imaginara que poderia vir. Mas qual! Estivera dia e meio de cama...

Quis saber então o que tinha feito a senhora, se saíra, quem estivera...

— A senhora tem andado a modo incomodada - disse Joana.

— É do tempo - observou Juliana. - Tinha trazido a sua costura, e ambas caladas continuaram o serão.

As dez horas Luísa ouviu bater devagarinho à porta do quarto. Era ela, decerto!

— Entre...

A voz de Juliana disse muito naturalmente:

— Está o chá na mesa.

Mas Luísa não se decidia a ir à sala, com medo, horror de a ver! Deu voltas no quarto, demorou-se; foi enfim, toda trêmula. Juliana vinha justamente no corredor; encolheu-se contra a parede, com respeito, disse:

— Quer que vá pôr a lamparina, minha senhora? Luísa fez que sim com a cabeça, sem a olhar.

Quando voltou ao quarto Juliana enchia o jarro; e depois de ter aberto a cama, cerrado as portas, quase em pontas de pés:

— A senhora não precisa mais nada? - perguntou.

— Não.

— Muito boa noite, minha senhora. E não houve outra palavra mais.

— "Parece um sonho!" - pensava Luísa, ao despir-se melancolicamente.

— Esta criatura, com as minhas cartas, instalada em minha casa para me torturar, me roubar!" - Como se achava ela, Luísa, naquela situação? Nem sabia. As coisas tinham vindo tão bruscamente, com a precipitação furiosa de uma borrasca, que estala! Não tivera tempo de raciocinar, de se defender; fora embrulhada; e ali estava, quase sem dar fé, na sua casa sob a dominação da sua criada! Ah! Se tivesse falado a Sebastião! Tinha agora o dinheiro, decerto, notas, ouro... Com que frenesi lho arremessaria,. a expulsaria, e a arca, e os trapos, e a cuia!... - Jurou a si própria falar a Sebastião, dizer tudo! Iria mesmo à casa dele, para o impressionar mais!

Daí a pouco, quebrada da agitação do dia, adormecera - e sonhava que um estranho pássaro negro lhe entrara no quarto, fazendo uma ventania, com as suas asas pretas de morcego: era Juliana! Corria aterrada ao escritório, gritando: "Jorge!" Mas não via nem livros, nem estante, nem mesa; havia uma armação reles , de loja de tabaco, e por trás do balcão, Jorge acariciava sobre os joelhos uma bela mulher de formas robustas, em camisa de estopa, que perguntava com uma voz desfalecida de voluptuosidade e os olhos afogados em paixão: - "Brejeiros ou de Xabregas?" - Fugia então de casa indignada, e, através de sucessos confusos, via-se ao lado de Basílio, numa rua sem fim, onde os palácios tinham fachadas de catedrais, e as carruagens rolavam ricamente com uma pompa de cortejo. Contava soluçando a Basílio a traição de Jorge. E Basílio, saltitando em volta dela com requebros de palhaço, repenicava uma viola, e cantava:

— Escrevi uma carta a Cupido
A mandar-lhe perguntar
Se um coração ofendido
Tem obrigação de amar!

— Não tem! - gania a voz de Ernestinho, brandindo triunfante um rolo de papel. - E tudo se obscurecia de repente nos largos vôos circulares que fazia Juliana com as suas asas de morcego.

Capítulo nove

 

Juliana voltara para casa de Luísa por conselhos da tia Vitória.

— Olha, minha rica - tinha-lhe ela dito -, não há que ver, o pássaro fugiu-nos! Suspira, bem podes suspirar que o dinheiro grosso foi-se! Quem podia adivinhar que o homem desarvorava! Não, lá isso podes tirar daí o sentido! Que escusas de esperar nem cheta...

— Também me regalo de mandar as cartas ao marido, tia Vitória!

A velha encolheu os ombros:

— Não lucras nada com isso. Ou que eles se desquitem, ou que ele lhe parta os ossos, ou que a mande para um convento - tu não ganhas nada. E se se acomodarem, mais ficas a chuchar no dedo, porque nem tens a consolação de fazeres a cizânia. E isto é, se as coisas correrem pelo melhor, porque podes muito bem ficar mas é em lençóis de vinagre com alguma carga de pau que eles te mandem dar. - E vendo um gesto espantado de Juliana: - Já não era o primeiro caso, minha rica, já não era o primeiro. Olha que em Lisboa, passa-se muita coisa, e nem tudo vem nos jornais!

Positivamente o que ela tinha a fazer era voltar para a casa. Por que enfim o que restava de tudo aquilo? O medo de D. Luísa; esse é que lá estava sempre a dar-lhe por dentro a cólica; desse é que era necessário tirar partido...

— Tu voltas para lá - dizia - à espera que ela cumpra o que prometeu. Se te dá o dinheiro, bem... Se não, tem-na em todo o caso na mão, estás de dentro da praça, sabes o que se passa, podes-lhe apanhar muita coisa...

Mas Juliana hesitava. - Era difícil viverem debaixo das mesmas telhas sem haver uma questão por dá cá aquela palha.

— Não te diz uma palavra, tu verás...

— Mas tenho medo...

— De quê? - exclamava a tia Vitória. Ela não era mulher para a envenenar, não é verdade? Então? Quem a nada se arriscava nada ganhava. - Isto é se queres - acrescentou - senão trata de te arranjar noutra parte, e deita as cartas para o fundo da arca. Que diabo! Tu vais ver, se não te convém, safas-te...

Juliana decidiu ir, a "ver".

E reconheceu logo, que aquela finória da tia Vitória tinha carradas de razão.

Luísa, com efeito, parecia resignada. Sebastião tinha ido para Almada, outra vez. Mas como estava decidida, apenas ele voltasse, a ir a casa dele uma manhã, atirar-se-lhe aos pés, contar-lhe tudo, tudo, suportava Juliana, refletindo: -"E apenas por dias!" - Por isso não lhe disse uma palavra. Para quê? O que tinha a fazer era pagar-lhe e pô-la fora, não é verdade? Enquanto o não pudesse fazer, era agüentar e calar. Até que Sebastião voltasse...

Entretanto evitava vê-la. Nunca a chamava. Não saía da alcova de manhã, sem a ter sentido fora no quarto encher o banho, sacudir os vestidos. Ia para a sala de jantar com um livro, e nos intervalos não levantava os olhos das páginas. E durante todo o dia conservava0se no quarto com a porta fechada, lendo, costurando, pensando em Jorge - às vezes também em Basílio com ódio, desejando a volta de Sebastião, e preparando a sua história.

Juliana, uma manhã, encontrou Luísa no corredor trazendo para o quarto o regador cheio de água.

— Oh, minha senhora! Por que não chamou? - exclamou, quase escandalizada.

— Não tem dúvida - disse Luísa.

Mas Juliana seguiu-a ao quarto, e cerrando a porta:

— Ó minha senhora! - disse muito ofendida. - Isto assim não pode continuar. A senhora parece que tem medo de me ver, credo! Eu voltei para fazer o meu serviço como dantes... Verdade, verdade, naturalmente, sempre espero que a senhora faça o que prometeu... E lá largar as cartas não largo, sem ter seguro o pão da velhice. Mas o que se passou foi um repente de gênio, e já pedi perdão à senhora. Quero fazer o meu serviço... Agora se a senhora não quer, então saio, e -, acrescentou com uma voz seca - talvez seja pior para todos!...

Luísa, muito perturbada, balbuciou:

— Mas...

— Não, minha senhora - cortou Juliana severamente - aqui a criada sou eu.

E saiu, empertigada.

Tanta audácia aterrou Luísa. Aquela ladra era capaz de tudo!

Então, para a não irritar começou, daí por diante, a chamá-la, a dizer: -"traga isto, traga aquilo" - sem a olhar.

Mas Juliana fazia-se tão serviçal, era tão calada, que Luísa pouco a pouco, dia a dia, com o seu caráter móbil, inconsciente, cheio de deixar-se ir, principiou a perder o sentimento pungente daquela dificuldade. E no fim de três semanas as coisas tinham entrado nos seus eixos - dizia Juliana.

Luísa já gritava por ela do quarto, já a mandava a recados fora; Juliana chegava a ter às vezes migalhas de conversação: - Está um calor de morrer... A lavadeira tarda... - Um dia arriscou esta frase mais intima: - Encontrei a criada da senhora D. Leopoldina.

Luísa perguntou:

— Ainda está para o Porto?

— Ainda se demora um mês, minha senhora...

De resto havia na casa um aspecto muito tranqüilo, e Luísa, depois de tantas agitações, abandonava-se com gozo à satisfação daquele descanso. Ia às vezes ver D. Felicidade à Encarnação, que já se levantava. E esperava sempre Sebastião, mas sem impaciência, quase contente por ver adiado o momento terrível de lhe dizer: "Escrevi a um homem, Sebastião!"

Assim iam passando os dias; estava-se no fim de setembro.

Uma tarde Luísa ficara mais tempo à janela da sala de jantar; deixara cair o livro no regaço, e olhava, sorrindo, um bando de pombas que de algum quintal vizinho viera pousar sobre o tabique de terreno vago. Pensava vagamente em Basílio, no Paraíso... Sentiu passos; era Juliana.

— Que é?

A mulher cerrara a porta, e vindo junto dela, baixo:

— Então a senhora ainda não decidiu nada?

Luísa sentiu como uma pancada no estômago.

— Ainda não pude arranjar nada...

Juliana esteve um momento a olhar para o chão:

— Bem - murmurou, por fim.

E Luísa ouviu-a, no corredor, dizer alto:

— Isto quando o senhor voltar é que são os ajustes de contas!

Quando Jorge voltasse! Imediatamente no seu espírito, que se tinha pouco a pouco serenado, todos os sustos, as angústias estremeceram de novo àquela ameaça - assim uma rajada súbita põe em convulsão um arvoredo. Devia, pois, fazer alguma coisa antes que ele chegasse! Justamente Jorge escrevera-lhe, que não se demoraria, que a avisaria pelo telégrafo... Desejava, agora, que do ministério o mandassem fazer uma viagem mais longe, pela Espanha ou pela África; que alguma catástrofe, sem lhe fazer mal, o retardasse meses!...

Que faria ele, se soubesse? Matá-la-ia? Lembravam-lhe as suas palavras muito sérias, naquela noite, quando Ernestinho contara o final do seu drama... Metê-la-ia numa carruagem, levá-la-ia a um convento? E via a grossa portaria fechar-se com um ruído funerário de ferrolhos, olhos lúgubres estudá-la curiosamente...

O seu terror irraciocinado fizera-lhe mesmo perder a idéia nítida de seu marido; imaginava um outro Jorge sanguinário e vingativo, esquecendo o seu caráter bom, tão pouco melodramático. Um dia foi ao escritório, tomou a caixa das pistolas, fechou-a num baú de roupa velha, e escondeu a chave!...

Uma idéia amparava-a: era que apenas Sebastião viesse de Almada, estava salva; e apesar daquela agonia miúda de todos os momentos, quase receava saber que ele tivesse chegado - tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança - escrever a Basílio. O terror permanente amolecera-lhe o orgulho, como a lenta infiltração da água faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir "àquele infame": fora seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu único parente... E não teria de "dizer" a Sebastião! Já às vezes pensara que não aceitar dinheiro de Basílio fora uma "fanfarronada bem tola!" Um dia enfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil réis. Foi ela mesmo levá-la ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.

Nessa tarde, por acaso, Sebastião, que chegara de Almada, veio vê-la. Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar..

Falou da volta de Jorge; aludiu mesmo ao primo Basílio, à pouca vergonha da vizinhança...

— Não - disse - é a primeira coisa que hei de contar ao Jorge.

Porque se considerava salva, agora! E todos os dias seguia a carta, no seu caminho para França, como se a sua mesma vida fosse dentro daquele sobrescrito entregue ao acaso dos trens e à confusão das viagens! Chegara a Madri, depois a Barcelona, depois a Paris! Um carteiro corria a entregá-la na Rue Saint Florentin. Basílio abria-a tremendo, enchia um sobrescrito de notas, muitas, que cobria de beijos, e o envelope, trazendo a sua salvação e o seu descanso, começava a rolar para baixo, pela França e pela Navarra, soprando como um monstro e apressando-se como um próprio.

No dia em que a resposta devia chegar, levantou-se mais cedo, agitada, com o ouvido pregado na porta, esperando o toque do carteiro. Via-se já a expulsar Juliana, a soluçar de alegria!... Mas às dez e meia começou a estar nervosa; às onze chamou Joana, que fosse saber se o carteiro passara.

— Diz que sim, minha senhora, que lá passou.

— Canalha! - murmurou, pensando em Basílio.

Talvez, todavia, não tivesse respondido no mesmo dia! Esperou ainda, mas desconsolada, já sem fé. Nada! Nem na outra manhã, nem nas seguintes! O infame!

Veio-lhe então a idéia de loteria - porque insensivelmente a esperança tornara-se-lhe necessária. A primeira vez que saiu comprou umas poucas de cautelas. Apesar de não ser religiosa nem supersticiosa, meteu-as debaixo da peanha de um São Vicente de Paula que tinha sobre a cômoda, na alcova. Não se perdia nada. Examinava-as todos os dias, somava os algarismos a ver se davam "nove, noves fora, nada", ou um número par - que é de bom agouro! E aquele contato diário com a imagem do santo levando-a a pensar decerto na proteção inesperada do céu, fez uma promessa de cinqüenta missas se as cautelas fossem premiadas!...

BOOK: O Primo Basílio
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