O Primo Basílio (2 page)

Read O Primo Basílio Online

Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
4.6Mb size Format: txt, pdf, ePub

— Até logo, Zizi - gritou Jorge do corredor, ao sair.

— Olha!

Ele veio com a bengala debaixo do braço, apertando as luvas.

Não apareças muito tarde, hem? Escuta, traze-me uns bolos do Baltresqui para a D. Felicidade. Ouve. Vê se passas pela M.me François que me mande o chapéu. Escuta.

— Que mais, bom Deus?

— Ah! Não! Era para ires pelo livreiro que me mande mais romances... Mas está fechado!

Foi com duas lágrimas a tremer-lhe nas pálpebras que acabou as páginas da Dama das camélias. E estendida na voltaire, com o livro caído no regaço, fazendo recuar a película das unhas, pôs-se a cantar baixinho, com ternura, a ária final da Traviata:

— Addio, dei passato...

Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio...

Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. - Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião...

De resto fora uma criancice; ela mesma, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Basílio. Lembrava-se bem dele - alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo começara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio tinha chegado então da Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre três degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romãzeiras, onde ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde escura e polida dos arbustos de camélias fazia ruazinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam, tremiam na água do tanque; duas rolas, numa gaiola de vime, arrulhavam docemente; - e, no silêncio aldeão da quinta, o ruído seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrático.

Depois, vieram todos os episódios clássicos dos amores lisboetas passados em Sintra: os passeios em Sitiais ao luar, devagar, sobre a relva pálida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale, as areias ao longe, cheias de uma luz saudosa, idealizadora e branca; as sestas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante das águas que vão de pedra em pedra; as tardes na várzea de Colares, remando num velho bote, sobre a água escura da sombra dos freixos - e que risadas quando iam encalhar nas ervagens altas, e o seu chapéu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos!

Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe davam uma melancolia feliz!

Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha, toda cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria, dormitava; Basílio era rico, então; chamava-lhe tia Jojó, trazia-lhe cartuchos de doce...

Veio o inverno, e aquele amor foi-se abrigar na velha sala forrada de papel sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons serões ali! A mamã ressonava baixo com os pés embrulhados numa manta, o volume da Biblioteca das Damas caído sobre o regaço. E eles, muito chegados, muito felizes no sofá! O sofá! Quantas recordações! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro, bordada por ela, amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro. Um dia veio o final. João de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta de Colares foram vendidas.

Basílio estava pobre: partiu para o Brasil. Que saudades! Passou os primeiros dias sentada no sofá querido, soluçando baixo, com a fotografia dele entre as mãos. Vieram então os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritório da Companhia, quando os paquetes tardavam...

Passou um ano. Uma manhã, depois de um grande silêncio de Basílio, recebeu da Bahia uma longa carta, que começava: "Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinação como uma criancice..."

Desmaiou logo. Basílio afetava muita dor em duas laudas cheias de explicações: que estava ainda pobre; que teria de lutar muito antes de ter para dois; o clima era horrível; não a queria sacrificar, pobre anjo; chamava-lhe "minha pomba" e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.

Viveu triste durante meses. Era no inverno; e sentada à janela, por dentro dos vidros, com o seu bordado de lã, julgava-se desiludida, pensava no convento, seguindo com um olhar melancólico os guarda-chuvas gotejantes que passavam sob as cordas de água; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos:

— Ai! adeus, acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...

ou o final da Traviata, ou o Fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.

Mas então o catarro da mamã agravou-se; vieram os sustos, as noites veladas. Na convalescença foram para Belas; ligou-se ali muito com as Cardosos, duas irmãs magras, estouvadas e esguias, sempre coladas uma à outra, com um passinho trotado e seco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que falavam dos homens! Um tenente de artilharia tinha-se apaixonado por ela. Era vesgo, mandou-lhe uns versos, "Ao lírio de Belas":

Sobre a encosta da colina
Cresce o lírio virginal...

Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.

Quando voltaram no inverno tinha engordado, trazia boas cores. E um dia, tendo achado numa gaveta uma fotografia que logo ao princípio Basílio lhe mandara da Bahia, de calça branca e chapéu panamá, fitou-a, encolhendo os ombros:

— E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!

Tinham passado três anos quando conheceu Jorge. Ao princípio não lhe agradou. Não gostava dos homens barbados; depois percebeu que era a primeira barba, fina, rente, muito macia decerto; começou a admirar os seus olhos, a sua frescura. E sem o amar sentia ao pé dele como uma fraqueza, uma dependência e uma quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro, e de ficar assim muitos anos, confortável, sem receio de nada. Que sensação quando ele lhe disse: "Vamos casar, hem!" Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate, Jorge tinha-lhe tomado a mão; ela sentia o calor daquela palma larga penetrá-la, tomar posse dela; disse que sim; ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino dilatarem-se docemente os seus seios. Estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a mamã!

Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. Foi necessário acender luz para lhe pôr a coroa e o véu de tule. Todo aquele dia lhe aparecia como enevoado, sem contornos, à maneira de um sonho antigo - onde destacava a cara balofa e amarelada do padre, e a figura medonha de uma velha, que estendia a mão adunca, com uma sofreguidão colérica, empurrando, rogando pragas, quando, à porta da igreja, Jorge comovido distribuía patacos. Os sapatos de cetim apertavam-na. Sentia-se enjoada da madrugada, fora necessário fazer-lhe chá verde muito forte. E tão cansada à noite naquela casa nova, depois de desfazer os seus baús! Quando Jorge apagou a vela, com um sopro trêmulo, os luminosos faiscavam, corriam-lhe diante dos olhos.

Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre; pôs-se a adorá-lo. Tinha uma curiosidade constante da sua pessoa e das suas coisas, mexia-lhe no cabelo, na roupa, nas pistolas, nos papéis. Olhava muito para os maridos das outras, comparava, tinha orgulho nele. Jorge envolvia-a em delicadezas de amante, ajoelhava-se aos seus pés, era muito dengueiro. E sempre de bom humor, com muita graça, mas nas coisas da sua profissão ou do seu brio tinha severidades exageradas, e punha então nas palavras, nos modos uma solenidade carrancuda. Uma amiga dela, romanesca, que via em tudo dramas, tinha-lhe dito: "É homem para te dar uma punhalada". Ela que não conhecia ainda então o temperamento plácido de Jorge, acreditou, e isso mesmo criou uma exaltação no seu amor por ele. Era o seu tudo - a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem! Pôs-se a pensar, o que teria sucedido se tivesse casado com o primo Basílio. Que desgraça, hem! Onde estaria? Perdia-se em suposições de outros destinos, que se desenrolavam, como panos de teatro: via-se no Brasil, entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!

— Está ali a senhora D. Leopoldina - veio dizer Juliana.

Luísa ergueu-se surpreendida:

— Hem? A senhora D. Leopoldina? Para que mandou entrar?

Pôs-se a abotoar à pressa o roupão. Jesus! Olha se Jorge soubesse! Ele que lhe tinha dito tantas vezes que a não queria em casa! Mas se já estava na sala, agora, coitada!

— Está bom, diga-lhe que já vou.

Era a sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteiras, na Rua da Madalena, e estudado no mesmo colégio, à Patriarcal, na Rita Pessoa, a coxa. Leopoldina era a filha única do Visconde de Quebrais, o devasso, o caquético, que fora pajem de D. Miguel23. Tinha feito um casamento infeliz com um João Noronha, empregado da alfândega. Chamavam-lhe a "Quebrais"; chamavam-lhe também a "Pão e Queijo".

Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luísa: "Tudo, menos a Leopoldina!"

Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito colados, com uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica, sem largueza de roda, apanhados atrás. Dizia-se dela com os olhos em alvo: "é uma estátua, é uma Vênus!" Tinha ombros de modelo, de uma redondeza descaída e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas metades de limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pele, muito fina, de um trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, de uma negrura intensa, afogados num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.

Luísa veio para ela com os braços abertos, beijaram-se muito. E Leopoldina, sentada no sofá, enrolando devagarinho a seda clara do guarda-sol, começou a queixar-se: tinha estado adoentada, muito secada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda.

Como era um pouco curta de vista, para se afirmar piscava ligeiramente os olhos, descerrando os beiços gordinhos, de um vermelho cálido.

— A felicidade dá tudo, até boas cores! - disse, sorrindo.

O que a trazia era perguntar-lhe a morada da francesa que lhe fazia os chapéus. E há tanto tempo que a não via, já tinha saudades também!

— Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.

E deixou-se cair sobre a almofada do sofá, encalmada, com um sorriso aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.

Luísa disse-lhe a morada da francesa, gabou-lha: era barateira e tinha bom gosto. Como a sala estava escura foi entreabrir um pouco as portadas da janela. Os estofos das cadeiras e as bambinelas eram de repes verde-escuro; o papel e o tapete com desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e naquela decoração sombria destacavam muito - as molduras douradas e pesadas de duas gravuras (a Medéia de Delacroix e a Mártir de Delaroche), as encadernações escarlates de dois vastos volumes do Dante de G. Doré e entre as janelas o oval de um espelho onde se refletia um napolitano de biscuit que, na consola, dançava a tarantela.

Por cima do sofá pendia o retrato da mãe de Jorge, a óleo. Estava sentada, vestida ricamente de preto, direita no seu corpete espartilhado e seco: uma das mãos, de um lívido morto, pousava nos joelhos sobrecarregada de anéis; a outra perdia-se entre as rendas muito trabalhadas de um mantelete de cetim; e aquela figura longa, macilenta, com grandes olhos carregados de negro, destacava sobre uma cortina escarlate, corrida em pregas copiosamente quebradas, deixando ver para além céus azulados e redondezas de arvoredos.

— E teu marido? - perguntou Luísa, vindo sentar-se muito junto de Leopoldina.

— Como sempre. Pouco divertido - respondeu, rindo. E, com um ar sério, a testa um pouco franzida: - Sabes que acabei com o Mendonça?

Luísa fez-se ligeiramente vermelha.

— Sim?

Leopoldina deu logo detalhes.

Era muito indiscreta, falava muito de si, das suas sensações, da sua alcova, das suas contas. Nunca tivera segredos para Luísa; e na sua necessidade de fazer confidências, de gozar a admiração dela, descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões deles, as maneiras de amar, os tiques, a roupa, com grandes exagerações! Aquilo era sempre muito picante, cochichado ao canto de um sofá, entre risinhos; Luísa costumava escutar, toda interessada, as maçãs do rosto um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava tão curioso!

— Desta vez é que bem posso dizer que me enganei, minha rica filha! - exclamou Leopoldina erguendo os olhos desoladamente.

Luísa riu.

— Tu enganas-te quase sempre!

Era verdade! Era infeliz!

— Que queres tu? De cada vez imagino que é uma paixão, e de cada vez me sai uma maçada!

E picando o tapete com a ponta da sombrinha:

— Mas se um dia acerto!

— Vê se acertas - disse Luísa. - Já é tempo!

Às vezes na sua consciência achava Leopoldina "indecente"; mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que quase lhe inspirava uma atração física. Depois desculpava-a: era tão infeliz com o marido! Ia atrás da paixão, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, de onde a felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia Luísa como uma justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava.

— E que fez ele, o Mendonça?

Leopoldina encolheu os ombros, com um grande tédio:

— Escreveu-me uma carta muito tola, que afinal bem considerado era melhor que acabasse tudo, porque não estava para se meter em camisa de onze varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.

Other books

Twin Cities by Louisa Bacio
Endless Fear by Adrianne Lee
Beneath the Night Tree by Nicole Baart
Betrothed by Renee Rose
Rebel by Heather Graham
Prowl by Amber Garza